domingo, 28 de fevereiro de 2010

Um Filho

Bem, como dizia o Comandante, doer, dói sempre. Só não dói depois de morto, porque a vida é um eterno doer.

O ruim é quando fica dormente. E também não tem dor que não se acalme – e as mais das vezes se apaga. Aquilo que te mata hoje amanhã estará esquecido, e eu não sei se isso está certo ou está errado, porque acho que o certo era lembrar. Então o bom, o feliz se apagar como o ruim, me parece injusto, porque o bom sempre acontece menos e o mau dez vezes mais. O verdadeiro seria que desbotasse o mau e o bom ficasse nas suas cores vivas, chamando alegria.

Mais de uma vez eu disse que se tivesse uma filha punha nela o nome de Alegria. Mas não tive a filha; e também conheci no Rio uma senhora chamada Alegria, Dona Alegria, vizinha numa casa de vila, no Catete. De manhã bem cedo eu ia apanhar o pão – nesse tempo se apanhava o pão na porta! – e ela apanhava o seu na mesma hora e eu lhe dava o meu bom dia e ela mal rosnava o bom dia dela, azeda, chinela roída, cabelo muito crespo em pé na testa – D. Alegria! Aí eu desisti do nome, embora ainda pensasse na filha.

Afinal, nem filha nem filho. Um que veio foi achado morto; me dormiram, me cortaram, me tiraram, estava morto lá dentro, ninguém o viu. Mas isso eu falo depois, numa hora em que doer menos ou não doer tanto.

Felizmente já faz tempo. Pensei que ia contar com raiva no reviver das coisas, mas errei. Dor se gasta. E raiva também, e até ódio. Aliás também se gasta a alegria, eu já não disse? Filho, filho, falar franco, hoje só raramente me lembro do filho perdido. Mas tenho inveja das outras com seus filhos, netos, genros.

Embora a gente se renove como todo mundo, tudo no mundo que não se repete jamais – pode parecer que é o mesmo mas são tudo outros, as folhas das plantas, os passarinhos, os peixes, as moscas. A gente encara a natureza como uma prova parcial da eternidade – sempre há os peixes, os passarinhos, as moscas, as folhas, só as pessoas morrem e vão embora e não voltam nunca mais. Porém aí está o engano, nada volta mais, nem sequer as ondas do mar voltam; a água é outra em cada onda, a água da maré alta se embebe na areia onde se filtra, e a outra onda que vem é água nova, caída das nuvens da chuva. E as folhas do ano passado amarelaram, se esfarinharam, viraram terra, e estas folhas de hoje também são novas, feitas de uma seiva nova, chupada do chão molhado por chuvas novas. E os passarinhos são outros também, filhos e netos daqueles que faziam ninho e cantavam no ano passado, e assim também os peixes, e os ratos da despensa, e os pintos... tudo. Sem falar nas moscas, grilos e mosquitos. Tudo.

Gente também vem outra para o lugar de quem parte, mas a mania das pessoas é achar que a gente nova não tem direito ao lugar da gente velha, como se cada vivente humano tivesse o seu lugar separado e não fosse para botar mais ninguém no nicho dele.

Aí é que está o erro, ninguém querer aceitar os substitutos; a gente recebe os novos e até gosta deles, mas sem abrir mão dos velhos. E isso não pode, como é que ia ficar o mundo? Deus sabe o que faz, e o que vale é que mesmo se a gente se desespera (como é o meu caso – ou foi –) um dia por fim chega a nossa hora e a gente vai embora por sua vez e os que ficam que se desesperem. Se se desesperam. Porque tem os que vão embora e só deixam aquele alívio, imagine se eles ficassem eternamente, graças a Deus se foram e alguns até mesmo se foram tarde.
Trecho do livro Dôra, Doralina, de Rachel de Queiroz.

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