quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

A ansiedade de ser feliz

Caminhando na rua percebo ansiedade estampada no rosto das pessoas. É como se algo faltasse. Mas, o que falta? Olho para o céu e, ao ver o vôo tranqüilo de uma andorinha, percebo... Falta leveza, felicidade.

Onde está a felicidade? Quem guarda o segredo deste tesouro? É possível que exista pessoa que não deseje ser feliz?

No silêncio, no barulho, no corre-corre e engarrafamento da cidade, na calmaria do campo ouço: você precisa ser feliz! Seja feliz! Agora! Já!

Não adianta, somos pássaros de vôo pesado, estamos condicionados à correria, à comida rápida, às portas automáticas. E esse imediatismo faz com que, muitas vezes, a felicidade seja como uma tirana, e o nosso tempo o seu aguilhão.

A felicidade não padece de ansiedade e nem mesmo usa relógio.

Com uma calmaria invejável, a andorinha flutua no céu alaranjado. A pequena ave não se importa com o tempo e segue adiante com a leveza invisível do ar. Seria a leveza o segredo da felicidade?

A felicidade está na simplicidade das coisas, na leveza de um sorriso. Não se cobre tanto, não crie tantas expectativas e não espere a felicidade. Siga adiante e esqueça o tempo, as horas. Seja paciente como quem espera uma carta, não um e-mail. Respire fundo. De dentro para fora: desacelere. Não faça da felicidade seu algoz. 

Psiu, não conte a ninguém, mas um passarinho me confidenciou que, só consegue ser feliz quem se liberta da felicidade.
A ansiedade de ser feliz, de Francesca Martins.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Ervilhas

Não sentia fome, mas devia sentar-se a mesa como mandava o costume. Instintivamente fitava o prato evitando o olhar inquisitivo da mulher. O silêncio vazio do matrimonio indesejado o atormentava todavia, calmamente, espetava com o garfo as ervilhas frias levando-as aos lábios rachados. Ervilhas frias. Frias como Emília. Ela era virgem, ele era homem, era seu dever, era o costume. Maldição. Não via mais o prato, via sua vida. Afinal, nunca havia sido homem suficiente para simplesmente brincar com a comida.

Ervilhas, de Francesca Martins.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Diálogo


Para Luiz Arthur Nunes

A: Você é meu companheiro.
B: Hein?
A: Você é meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que você é meu companheiro.
B: O que é que você quer dizer com isso?
A: Eu quero dizer que você é meu companheiro. Só isso.
B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto.
A: Não. Não tem nada. Deixa de ser paranóico.
B: Não é disso que estou falando.
A: Você está falando do quê, então?
B: Eu estou falando disso que você falou agora.
A: Ah, sei. Que eu sou teu companheiro.
B: Não, não foi assim: que eu sou teu companheiro.
A: Você também sente?
B: O quê?
A: Que você é meu companheiro?
B: Não me confunda. Tem alguma coisa atrás, eu sei.
A: Atrás do companheiro?
B: É.
A: Não.
B: Você não sente?
A: Que você é meu companheiro? Sinto, sim. Claro que eu sinto. E você, não?
B: Não. Não é isso. Não é assim.
A: Você não quer que seja isso assim?
B: Não é que eu não queira: é que não é.
A: Não me confunda, por favor, não me confunda. No começo era claro.
B: Agora não?
A: Agora sim. Você quer?
B: O quê?
A: Ser meu companheiro.
B: Ser teu companheiro?
A: É.
B: Companheiro?
A: Sim.
B: Eu não sei. Por favor não me confunda. No começo era claro. Tem alguma coisa atrás, você não vê?
A: Eu vejo. Eu quero.
B: O quê?
A: Que você seja meu companheiro.
B: Hein?
A: Eu quero que você seja meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que eu quero que você seja meu companheiro.
B: Você disse?
A: Eu disse?
B: Não, não foi assim: eu disse.
A: O quê?
B: Você é meu companheiro.
A: Hein?
(ad infinitum)

In: ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. Brasiliense: São Paulo, 1982.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Eu


- Estou tentando parar de fumar.
- Eu também.
- Mas queria ter uma coisa nas mãos agora.
- Você tem uma coisa nas mãos agora.
- Eu?
- Eu.
Trecho do livro 'Morangos mofados', de Caio Fernando Abreu.