domingo, 28 de fevereiro de 2010

Um Filho

Bem, como dizia o Comandante, doer, dói sempre. Só não dói depois de morto, porque a vida é um eterno doer.

O ruim é quando fica dormente. E também não tem dor que não se acalme – e as mais das vezes se apaga. Aquilo que te mata hoje amanhã estará esquecido, e eu não sei se isso está certo ou está errado, porque acho que o certo era lembrar. Então o bom, o feliz se apagar como o ruim, me parece injusto, porque o bom sempre acontece menos e o mau dez vezes mais. O verdadeiro seria que desbotasse o mau e o bom ficasse nas suas cores vivas, chamando alegria.

Mais de uma vez eu disse que se tivesse uma filha punha nela o nome de Alegria. Mas não tive a filha; e também conheci no Rio uma senhora chamada Alegria, Dona Alegria, vizinha numa casa de vila, no Catete. De manhã bem cedo eu ia apanhar o pão – nesse tempo se apanhava o pão na porta! – e ela apanhava o seu na mesma hora e eu lhe dava o meu bom dia e ela mal rosnava o bom dia dela, azeda, chinela roída, cabelo muito crespo em pé na testa – D. Alegria! Aí eu desisti do nome, embora ainda pensasse na filha.

Afinal, nem filha nem filho. Um que veio foi achado morto; me dormiram, me cortaram, me tiraram, estava morto lá dentro, ninguém o viu. Mas isso eu falo depois, numa hora em que doer menos ou não doer tanto.

Felizmente já faz tempo. Pensei que ia contar com raiva no reviver das coisas, mas errei. Dor se gasta. E raiva também, e até ódio. Aliás também se gasta a alegria, eu já não disse? Filho, filho, falar franco, hoje só raramente me lembro do filho perdido. Mas tenho inveja das outras com seus filhos, netos, genros.

Embora a gente se renove como todo mundo, tudo no mundo que não se repete jamais – pode parecer que é o mesmo mas são tudo outros, as folhas das plantas, os passarinhos, os peixes, as moscas. A gente encara a natureza como uma prova parcial da eternidade – sempre há os peixes, os passarinhos, as moscas, as folhas, só as pessoas morrem e vão embora e não voltam nunca mais. Porém aí está o engano, nada volta mais, nem sequer as ondas do mar voltam; a água é outra em cada onda, a água da maré alta se embebe na areia onde se filtra, e a outra onda que vem é água nova, caída das nuvens da chuva. E as folhas do ano passado amarelaram, se esfarinharam, viraram terra, e estas folhas de hoje também são novas, feitas de uma seiva nova, chupada do chão molhado por chuvas novas. E os passarinhos são outros também, filhos e netos daqueles que faziam ninho e cantavam no ano passado, e assim também os peixes, e os ratos da despensa, e os pintos... tudo. Sem falar nas moscas, grilos e mosquitos. Tudo.

Gente também vem outra para o lugar de quem parte, mas a mania das pessoas é achar que a gente nova não tem direito ao lugar da gente velha, como se cada vivente humano tivesse o seu lugar separado e não fosse para botar mais ninguém no nicho dele.

Aí é que está o erro, ninguém querer aceitar os substitutos; a gente recebe os novos e até gosta deles, mas sem abrir mão dos velhos. E isso não pode, como é que ia ficar o mundo? Deus sabe o que faz, e o que vale é que mesmo se a gente se desespera (como é o meu caso – ou foi –) um dia por fim chega a nossa hora e a gente vai embora por sua vez e os que ficam que se desesperem. Se se desesperam. Porque tem os que vão embora e só deixam aquele alívio, imagine se eles ficassem eternamente, graças a Deus se foram e alguns até mesmo se foram tarde.
Trecho do livro Dôra, Doralina, de Rachel de Queiroz.

Florbela

Sou uma céptica que crê em tudo, uma desiludida cheia de ilusões, uma revoltada que aceita, sorridente, todo o mal da vida, uma indiferente a transbordar de ternura. Grave e metódica até à mania, atenta a todas as subtilezas de um raciocínio claro e lúcido, não deixo, no entanto, de ser um D. Quixote fêmea a combater moinhos de vento, quimérica e fantástica, sempre enganada e sempre a pedir novas mentiras à vida, num dar de mim própria que não acaba, que não desfalece, que não cansa.    Florbela Espanca.

Enfim, felicidade!



Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade.
Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Mais uma vez, ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar teus olhos que são doces. Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto. No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida, e eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz...
Trecho do texto Ausência, de Vinícius de Moraes.

Como um trapezista

Ah, fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insone, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias adentro, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio jeito exato dele, em algum cheiro o cheiro preciso dele. Que não suspeitará de tua perdição, mergulhado como agora, a teu lado, na contemplação dessa paisagem interna onde não sabes sequer que lugar ocupas, e nem mesmo estás. Na frente do espelho, nessas manhãs maldormidas, acompanharás com a ponta dos dedos o nascimento de novos fios brancos nas tuas têmporas, o percurso áspero e cada vez mais fundo dos negros vales lavrados sob teus olhos profundamente desencantados. Sabes de tudo sobre esse possível amargo futuro. Sabes também que já não poderias voltar atrás, que estás inteiramente subjugado e as tuas palavras, sejam quais forem, não serão jamais sábias o suficiente para determinar que essa porta a ser aberta agora, logo após teres dito tudo, te conduza ao céu ou ao inferno. Mas sabes principalmente, com uma certa misericórdia doce por ti, por todos, que tudo passará um dia, quem sabe tão de repente quanto veio, ou lentamente, não importa.Só não saberás nunca que neste exato momento tens a beleza insuportável da coisa inteiramente viva. Como um trapezista que só repara na ausência da rede após o salto lançado, acendes o abajur do canto da sala depois de apagar a luz mais forte. E começas a falar.
Caio Fernando Abreu.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Poesia, Vicia e Mata

Poesia é uma droga. Corrompe a gente. No primeiro contato você nem gosta tanto. Mas, sem que você planeje ou procure, a poesia te encontra de novo. E lá está você, se entorpecendo. Começa a curtir a onda, percebe que dá barato... e pronto. Ela te corrompe até te dominar.

Você acha que ela é inofensiva, mas não é. Ela te corrompe até te dominar, escute bem isso. Para fazer qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, você precisa dela – poesia maldita. Chega um ponto que você pira. Você consome tanto, mas quer sempre mais e mais e mais e mais e mais e mais e mais e mais e mais e mais e mais e mais e começa a ver poesia em tudo: em bunda, em poste, em madeira, em nuvem e até em gente morta. Qualquer coisa só faz sentido para você por causa da droga. Tem que ter poesia para você curtir a vida.

Você chega ao ponto de xingar Deus. E ainda acha bonito: “É barroco!” Também pudera. Quem começa com alguns versinhos, dia ou outro, logo, logo salta para alguns sonetos “só nos fins de semana”. Ledo engano. O próximo final de semana demora, maluco. “Segunda-feira é sagrado”, eu sei. Já na terça, que mal há uma trovinha, ou uma odesinha?! Coisa pouca. Bobagem.

Vicia neguinho. Escuta o que eu estou te falando: droga vicia e mata. Aposto que você acha que poesia não mata. É assim mesmo. Depois, você mesmo chama pela morte. A poesia transborda tanto na sua vida, que você começa a achar que as belezas daqui não têm mais mistério. E você quer mais, sempre mais. E vai buscar nos enigmas da morte outras belezas que encantem mais o seu torpor. Conheço muitos que morreram assim: over-dose de poesia. Não acredita? Sá Carneiro, conhece? Nem procure saber. Não se aproxime de gente assim. Poesia corrompe a gente, eu já te disse.

Escute o que eu estou falando: poesia é droga. Quer ficar de boa? Fuma um baseadinho e vai ver a vida passar. Mas fuja da poesia. É droga pesada, cara, sai dessa. Se não, quando você se der conta, estará ouvindo vozes. É impossível controlar. Elas formulam palavras que te confundem e que lhe pesam como chumbo. Reproduzem som ritmado que te envolve e repetem rimas para te manter atento.

Escuta o que eu estou te falando: poesia é droga. Poesia libera enzimas que afetam todos os seus sensores, e estimulam todos os seus hormônios. A adrenalina vai a mil e o coração dispara. As pupilas se dilatam para captar mais luz, ao extremo de você se julgar capaz de enxergar no escuro. Se misturar poesia a álcool então... é bomba! E o que é pior: nem te dá ressaca.

Poesia te engana e você nem percebe. Vicia, neguinho. E quando ela te falta, você passa noite em claro tentando encontrar ao menos uma linhasinha para saciar teu vício. E se você não a encontra, o peito dói. A garganta fica seca e você quer apenas chorar. E nem derramar lágrimas você pode mais, porque seu corpo também depende dela - droga maldita.

Então, escuta o que eu estou te falando. Mexe com poesia não, cara. Fica de boa. Fuma um baseadinho e vai ver a vida passar.

Ouvindo:
O Outro - (Mário de Sá Carneiro)
Voz: Adriana Calcanhoto

Eu não sou eu
Nem sou o outro,
Sou qualquer coisa
De intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim
Para o outro.

Texto Cabeça Ativa, de Daniel Silveira.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Resposta



Estou sendo alegre neste instante,
por isso me recuso a ser vencida.
Então amo como resposta.
Clarice Lispector.

Dentro, fora


Não choro mais. Na verdade, nem sequer entendo por que digo 'mais', se não estou certo se alguma vez chorei. Acho que sim, um dia. Quando havia dor. Agora só resta uma coisa seca. Dentro, fora.  Caio Fernando Abreu.

Lúcifer

A noite estava bonita e estrelada, e o céu coalhado de nuvens que recortavam sobre o azul as formas caprichosas. Lúcia tinha a alma poética; falava da natureza com o entusiasmo ingênuo que dá a vida contemplativa àqueles que não conhecem os segredos da ciência; muitas vezes fazia-me perguntas que me embaraçavam; outras cortava a frase colorida com um riso em que vertia a sua fina ironia.
— Ali está a minha estrela! Olhe, sou eu! disse mostrando-me Lúcifer, que se elevava no oriente, límpida e fulgurante.
Não pude deixar de sorrir-me.
— És muito linda no céu, sobretudo hoje que vestes um manto de tão puro azul; mas eu te prefiro aqui junto de mim, Lúcia.
— Também eu; antes queria viver sempre neste cantinho da tem como agora, respondeu-me tomando as mãos e olhando-me, do que no céu como ela brilhando para o mundo inteiro.
Calou-se um instante.
— Se eu ainda lá estivesse, desceria agora para vir sentar-me aqui. Mas Lúcifer deixou no céu a luz que perdeu para sempre.
Trecho do livro Lucíola, de José de Alencar.

Puro Êxtase


Esmalte vermelho, tinta no cabelo
Os pés no salto alto, cheios de desejo
Vontade de dançar até o amanhecer
Ela está suada, pronta pra se derreter!
Ela é puro êxtase, êxtase.
Barbies, Betty Boops, puro êxtase!
Música: Puro Êxtase - Barão Vermelho.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.
Cecília Meireles.

Sem Saída

Te­nho que ter paciência para não me perder dentro de mim: vivo me perdendo de vista. Preciso de paciência porque sou vários caminhos, inclusive o fatal beco-sem-saída.    Clarice Lispector.

Levíssima Embriaguez

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! E tudo se transformou em sim. Tudo se transformou em sim quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Sem a grande dança dos erros. Sem o cerimonial das palavras desacertadas. Ele a procurava e a via, ela via que ele vira, ela que estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Nada erraria, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais andavam, menos com aspereza queriam, e sorriam. Tudo só porque não tinham prestado atenção, só porque estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito não eram exigentes, nem duros, e não quiseram ter o que já tinham. Nem quiseram dar um nome; porque não precisavam ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por estarem distraídos.    Clarice Lispector.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Sempre Distante


O teu olhar sempre distante, sempre me engana.
Eu entro sempre na tua dança de cigana.
Música: Refrão De Bolero - Engenheiros do Hawaii.

Mais Uma Carta


Te chamar de carta fora do baralho,
descartar, embaralhar você.
Música: Perfeita Simetria - Engenheiros do Hawaii.

O Nosso Fim

É triste saber que um dia vou ver você passar e não sentir cada milímetro do meu corpo arder e enjoar. É triste saber que um dia vou ouvir sua voz ou olhar seu rosto e o resto do mundo não vai desaparecer. O fim do amor é ainda mais triste do que o nosso fim. Meu amor está cansado, surrado, ele quer me deixar para renascer depois, lindo e puro, em outro canto, mas eu não quero outro canto, eu quero insistir no nosso canto. Eu me agarro à beiradinha do meu amor, eu imploro pra que ele fique, ainda que doa mais do que cabe em mim, eu imploro pra que pelo menos esse amor que eu sinto por você não me deixe, pelo menos ele, ainda que insuportável, não desista. (...) Se antes de você aparecer eu já te amava, eu já te esperava, eu já sabia que você existia, como eu posso não te amar agora que você tem forma, sorriso, coração e nome?    Tati Bernardi.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Quadrilha Para Recordar

O que me compele:
não tua presença,
senão a lembrança,
vestida de afeto,
que eras pequena,
assim sem caminho,
tão longe de tudo,
tão quase moleca,
às vezes encanto,
nas outras, desejo.
Algo me condena
ao ver o teu rosto
de novo irrompendo...
– De novo! De novo!!!
Não sei se de longe
te aprumo tocaia,
te empurro ao passar,
nem olho de lado,
faço por vingança
fingindo um acaso.
É pena que agora
estás noutra e noutro,
não posso mais nada,
somente esperar
se não no decênio
de que me falaste,
talvez num desastre,
quiçá tempestade,
chuva de granizo,
mandinga de tia,
ungüento de feira,
um resto de mar.
Que faço? Te espero?
Te deixo passar?
Te castro, te engulo,
te aborto, te cuspo...
qual nada, vacilo!
Se penso, desisto,
se intento, me amanso,
sou pouco demais
com tempo de menos,
achei ter virtude,
pensei te encantar:
– Já era! Já era!
De tudo que faço,
de ontem, de hoje,
só fica o desejo,
mas esse é tão besta
que chego a te ver
casada comigo.
Texto Quadrilha Para Recordar, de Sinval Farias.
http://profsinvalfarias.blogspot.com/

A Música Parou

Toda vez que toca o telefone, eu penso que é você. Toda noite de insônia eu penso em te escrever, para dizer que o teu silêncio me agride e não me agrada ser um calendário do ano passado, para dizer que teu crime me cansa e não compensa entrar na dança depois que a música parou; a música parou.
Música: Perfeita Simetria - Engenheiros do Hawaii.

Você Existe Em Mim

Eu te amei muito. Nunca disse, como você também não disse, mas acho que você soube. Pena que as grandes e as cucas confusas não saibam amar. Pena também que a gente se envergonhe de dizer, a gente não devia ter vergonha do que é bonito. Penso sempre que um dia a gente vai se encontrar de novo, e que então tudo vai ser mais claro, que não vai mais haver medo nem coisas falsas. Há uma porção de coisas minhas que você não sabe, e que precisaria saber para compreender todas as vezes que fugi de você e voltei e tornei a fugir. São coisas difíceis de serem contadas, mais difíceis talvez de serem compreendidas — se um dia a gente se encontrar de novo, em amor, eu direi delas, caso contrário não será preciso. Essas coisas não pedem resposta nem ressonância alguma em você: eu só queria que você soubesse do muito amor e ternura que eu tinha — e tenho — pra você. Acho que é bom a gente saber que existe desse jeito em alguém, como você existe em mim.    Caio Fernando Loureiro de Abreu.

Palavras Inteiras



Eu digo o que condiz.
Eu gosto é do estrago.
Música: O Velho e o Moço - Los Hermanos.

Óbvio




- Por que você o ama?
- Porque ele não precisa de mim.
 XX.

A Verdade

A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
Porque a meia pessoa que entrava
Só trazia o perfil de meia verdade,
E a sua segunda metade
Voltava igualmente com meios perfis
E os meios perfis não coincidiam verdade...
Arrebentaram a porta.
Derrubaram a porta,
Chegaram ao lugar luminoso
Onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
Diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual
a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela
E carecia optar.
Cada um optou conforme
Seu capricho,
sua ilusão,
sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O Tempo



A correr, de segundo em segundo,
Vou formando os minutos que correm...
Formo as horas que passam no mundo,
Formo os anos que nascem e morrem.
Trecho do texto O Tempo, de Olavo Bilac.

Das Utopias



Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!
Mário Quintana

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Amor e Outros Males

         Uma leitora delicada me escreve: não gostou de uma crônica minha de outro dia, sobre dois amantes que se mataram. Pouca gente ou ninguém gostou dessa crônica; paciência. Mas o que a leitora estranha é que o cronista “qualifique o amor, o principal sentimento da humanidade, de coisa tão incômoda”. E diz mais: “Não é possível que o senhor não ame, e que, amando, julgue um sentimento de tal grandeza incômodo.”
         Não, minha senhora, não amo ninguém; o coração está velho e cansado. Mas a lembrança que tenho de meu último amor, anos atrás, foi exatamente isso que me inspirou esse vulgar adjetivo – “incômodo”. Na época eu usaria talvez adjetivo mais bonito, pois o amor, ainda que infeliz, era grande; mas é uma das tristes coisas desta vida sentir que um grande amor pode deixar apenas uma lembrança mesquinha; daquele ficou apenas esse adjetivo, que a aborreceu.
         Não sei se vale a pena lhe contar que a minha amada era linda; não, não a descreverei, porque só de revê-la em pensamento alguma coisa dói dentro de mim. Era linda, inteligente, pura e sensível – e não me tinha, nem de longe, amor algum; apenas uma leve amizade, igual a muitas outras e inferior a várias.
         A história acaba aqui; é, como vê, uma história terrivelmente sem graça, e que eu poderia ter contado em uma só frase. Mas o pior é que não foi curta. Durou, doeu e – perdoe, minha delicada leitora – incomodou.
         Eu andava pela rua e a sua lembrança era alguma coisa encostada em minha cara, travesseiro no ar; era um terceiro braço que me faltava, e doía um pouco; era uma gravata que me enforcava devagar, suspensa de uma nuvem. A senhora acharia exagerado se eu lhe dissesse que aquele amor era uma cruz que eu carregava o dia inteiro e à qual eu dormia pregado; então serei mais modesto e mais prosaico dizendo que era como um mau jeito no pescoço que de vez em quando doía como bursite. Eu já tive um mês de bursite, minha senhora; dói de se dar guinchos, de se ter vontade de saltar pela janela. Pois que venha outra bursite, mas não volte nunca um amor como aquele. Bursite é uma dor burra, que dói, dói, mesmo, e vai doendo; a dor do amor tem de repente uma doçura, um instante de sonho que mesmo sabendo que não se tem esperança alguma a gente fica sonhando, como um menino bobo que vai andando distraído e de repente dá uma topada numa pedra. E a angústia lenta de quem parece que está morrendo afogado no ar, e o humilde sentimento de ridículo e de impotência, e o desânimo que às vezes invade o corpo e a alma, e a “vontade de chorar e de morrer”, de que fala o samba?
         Por favor, minha delicada leitora; se, pelo que escrevo, me tem alguma estima, por favor: me deseje uma boa bursite.
Texto Amor e Outros Males,  de Rubem Braga.

Eu Prometo

Houve um tempo: nós o perdemos? Tudo o que poderia vibrar calou-se numa espera demasiada. Talvez te sirva este vazio, que é como teu rosto contornado pelo silêncio ou pelo fio muito fino de uma lágrima. Podes te acomodar aí, como uma flor, um fruto esquecido sobre a mesa. Prometo: virei pisando leve, para que nem estremeça na tua vida pousada na minha.    Lya Luft.

A Um Ausente

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,

simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.
Carlos Drummond de Andrade.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

As Sem-razões do Amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
Carlos Drummond de Andrade.

Até que o sono me abrace

Mas essa barulheira está me atormentando, sei que nessa noite alguém está vivendo mais que eu. E eu vou ficar dentro desse quarto ouvindo o som da vida, vou escutá-lo até que o sono me abrace.
Trecho do livro  Cem escovadas antes de ir para a cama, de Melissa Panarello.

Inconfesso Desejo

Queria ter coragem
Para falar deste segredo
Queria poder declarar ao mundo
Este amor
Não me falta vontade
Não me falta desejo
Você é minha vontade
Meu maior desejo
Queria poder gritar
Esta loucura saudável
Que é estar em teus braços
Perdido pelos teus beijos
Sentindo-me louco de desejo
Queria recitar versos
Cantar aos quatros ventos
As palavras que brotam
Você é a inspiração
Minha motivação
Queria falar dos sonhos
Dizer os meus secretos desejos
Que é largar tudo
Para viver com você
Este inconfesso desejo.
Carlos Drummond de Andrade.

Fênix

Não é verdade a tua solidão. A um canto, do lado de fora, meu coração espera: fênix dolorosa, consome-se e renasce, fiel. Quem sabe, quando abrires uma fresta em tua porta, te alegrarás vendo-o aí, guardando essa luz que se alastrará por rios sem fim de uma geografia desconhecida: e só os escolhidos entenderão.    Lya Luft.

Sonegar é trair?

Foi quando comecei a atraiçoá-la. Não que tivesse revelado os seus segredos ou a tivesse comprometido. Não contei nada que devesse ter calado. Pelo contrário, calei o que deveria ter contado. Soneguei a Hanna. Sei que sonegar é uma variação discreta da traição. Por fora, não é possivel ver se se está a sonegar alguém, ou apenas a usar a discrição, a ser respeitador, a evitar situações deliacadas e aborrecimentos. Mas aquele que sonega sabe muito bem o que está a fazer. E do mesmo modo, o sonegar é tão grave numa relação como outras formas mais espectaculares de traição.
Trecho do livro O Leitor, de Bernhard Schlink.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

The Reason



...I'm not a perfect person
I never meant to do those things to you
And so I have to say before I go
That I just want you to know

I've found out a reason for me
To change who I used to be
A reason to start over new
And the reason is you.
Música: The Reason - Hoobastank

Laissez-passer



Laissez faire, laissez aller, laissez passer.
Marquês de Argenson.

A carta que não foi mandada

Paris, outono de 73
Estou no nosso bar mais uma vez
E escrevo pra dizer
Que é a mesma taça e a mesma luz
Brilhando no champanhe em vários tons azuis
No espelho em frente eu sou mais um freguês
Um homem que já foi feliz, talvez
E vejo que em seu rosto correm lágrimas de dor
Saudades, certamente, de algum grande amor

Mas ao vê-lo assim tão triste e só
Sou eu que estou chorando
Lágrimas iguais

E, a vida é assim, o tempo passa
E fica relembrando
Canções do amor demais
Sim, será mais um, mais um qualquer
Que vem de vez em quando
E olha para trás
É, existe sempre uma mulher
Pra se ficar pensando
Nem sei... nem lembro mais
Vinicius de Moraes.

Deusa

´

Deusa, visão dos céus que me domina
...tu que és mulher e nada mais!
Deusa, valsa carioca.

Poética I

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
Meu tempo é quando.
Vinícius de Moraes.

Somando as Incompreensões


Porque eu me imaginava mais forte.
Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente.
Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.
Clarice Lispector.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Sem Remédio

Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos de Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!
Florbela Espanca.

João 1,14

Vivi enfeitiçado, encarcerado num corpo
e na humildade de uma alma.
Conheci a memória,
essa moeda que nunca é a mesma.
Conheci a esperança e o temor,
esses dois rostos do incerto futuro.
Conheci a vigília, o sono, os sonhos,
a ignorância, a carne,
os torpes labirintos da razão...
Trecho de João 1,14, de Jorge Luis Borges.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Desejos vãos

Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza…
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras… essas… pisa-as toda a gente!…
Florbela Espanca.

Grite!

'Grite', ordenei-me quieta. 'Grite', repeti-me inutilmente com um suspiro de profunda quietude. (...) Mas se eu gritasse uma só vez que fosse, talvez nunca mais pudesse parar. Se eu gritasse ninguém poderia fazer mais nada por mim; enquanto, se eu nunca revelar a minha carência, ninguém se assustará comigo e me ajudarão sem saber; mas só enquanto eu não assustar ninguém por ter saído dos regulamentos. Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável. Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão pois arrastam os que saem para fora do mundo possível, o ser excepcional é arrastado, o ser gritante.   Clarice Lispector.

Uma flor


Se alguém ama uma flor da qual só existe um exemplar em milhões e milhões de estrelas, isso basta para que seja feliz quando a contempla.
Antoine de Saint Exupéry.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

A Chuva



Onde as gotas de chuva caíam, desenhava-se um sorriso.
Elyene Adorno.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Imaginário


Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente. Existia somente dentro dela.
Caio Fernando Loureiro de Abreu.

Ah, o amor!

Amor é isto: a dialética entre a alegria do encontro e a dor da separação. E neste espaço o amor só sobrevive graças a algo que se chama fidelidade: a espera do regresso. Quem não pode suportar a dor da separação não está preparado para o amor. Porque o amor é algo que não se possui, jamais. É evento de graça. Aparece quando quer, e só nos resta ficar à espera. E, quando ele volta, a alegria volta com ele. E sentimos então que valeu a pena suportar a dor da ausência, pela alegria do reencontro.   Rubem Alves.

“Era vidro e se quebrou”


Fiquei magoado, não por me teres mentido,
mas por não poder voltar a acreditar-te.
Friedrich Nietzsche.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Teu Direito

Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las.
Voltaire.

Sonhei Contigo

Sonhei que você sonhava comigo. Depois, fiquei aflito. E quase certo de que isso não tinha acontecido. O que aconteceu, sim, é que foi você quem sonhou que eu sonhava com você. Mas não posso garantir nada. Sei que estou parado aqui, agora, pensando todas essas coisas. Como se estivesse — eu, não você — acordando um pouco assustado do bonito que foi ter tido aquele sonho em que você sonhava comigo. Tão breve. Mas tudo é muito longo, eu sei. Estou ficando cansativo? Cansado, também. Está bem, eu paro. Apanhe outra vez aquele pedaço de feltro: desembace, desembaço. Choveu demais, esfriou. Mas deve haver algum jeito exato de contar essa história que começa e não sei se termina ou continua assim: Sonhei que você sonhava comigo. Ou foi o contrário? Seja como for, pouco importa: não me desperte, por favor, não te desperto.  Caio Fernando Abreu.

Distraído



É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado.
Caio Fernando Abreu.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Ler

Ler rapidamente aquilo que o autor levou anos para pensar é um desrespeito. É certo que os pensamentos, por vezes, surgem rapidamente, como num relâmpago. Mas a gravidez é sempre longa. Há frases que resumem uma vida. Por isso é preciso ler vagarosamente, prestando atenção nas idéias que se escondem nos silêncios que há entre as palavras. Eu gostaria que me lessem assim. Quer eu escreva como um poeta, no esforço para mostrar a beleza, ou como palhaço, no esforço para mostrar o ridículo, é sempre a minha carne que se encontra nas minhas palavras.
Rubem Alves.

Forte o suficiente

Era uma coisa assustadora, essa sensação de que um buraco havia sido construído no meu peito, fazendo meus órgãos vitais pararem de funcionar e deixando-os em trapos, com cortes não curados nas beiradas que continuavam doendo e sangrando mesmo com a passagem do tempo. Racionalmente, eu sabia que meus pulmões deviam estar intactos, mas mesmo assim eu lutava por ar e minha cabeça rodava como se os meus esforços não me levassem a nada. Meu coração devia estar batendo também, mas eu não conseguia ouvir o barulho da pulsação nos meus ouvidos; minhas mãos pareciam azuis de frio. Me curvei, abraçando minhas costelas pra me manter junta. Procurei pela minha torpência, minha negação, mas elas tinham me abandonado. E mesmo assim, eu achava que podia sobreviver. Eu estava alerta, sentia a dor – a dor da perda que irradiava do meu peito, mandando ondas de dor pelos meus órgãos e minha cabeça – mas era suportável. Eu podia sobreviver. Não senti que a dor tinha diminuído com o tempo, mas eu tinha ficado forte o suficiente para suportá-la.
Trecho do livro Lua Nova, de Stephenie Meyer (Série Crepúsculo).

Duas Mulheres

Existiram sempre em mim pelo menos duas mulheres, uma desesperada e desnorteada, que se sentia a naufragar, e outra que queria apenas trazer beleza, graciosidade e vida às pessoas, e que estava pronta a entrar em cena como no teatro, pronta a ocultar as suas verdadeiras emoções, porque elas eram fraqueza, desamparo, desespero, e a apresentar ao mundo apenas um sorriso…
- Anais Nin.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Só Hoje

...Olhar teus olhos de promessas fáceis 
E te beijar a boca de um jeito que te faça rir
Hoje eu preciso te abraçar
Sentir teu cheiro de roupa limpa
Pra esquecer os meus anseios e dormir em paz...
Hoje, preciso de você
Com qualquer humor, com qualquer sorriso
Hoje, só tua presença
Vai me deixar feliz
Só hoje...
Música: Só Hoje - Jota Quest.

Preciso de Você

Eu preciso muito, muito de você. Eu quero muito, muito você aqui de vez em quando nem que seja, muito de vez em quando. Você nem precisa trazer maçãs, nem perguntar se estou melhor. Você não precisa trazer nada, só você mesmo. Você nem precisa dizer alguma coisa no telefone. Basta ligar e eu fico ouvindo o seu silêncio. Juro como não peço mais que o seu silêncio do outro lado da linha ou do outro lado da porta ou do outro lado do muro. Mas eu preciso muito, muito de você.
Caio Fernando Abreu.