quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Epifania

 
Caio Fernando Abreu.

Lídia

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente nao cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o o'bolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
Ricardo Reis.
Ricardo Reis é um dos três heterónimos mais conhecidos de Fernando Pessoa, tendo sido imaginado de relance pelo poeta em 1912 quando lhe veio à ideia escrever uns poemas de índole pagã.

Incógnita do instante

Só no ato do amor – pela límpida abstração de estrela do que se sente – capta-se a incógnita do instante que é duramente cristalina e vibrante no ar e a vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si.
Clarice Lispector.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Saudades de Madalena

Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste. E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.
Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito numerosas – e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.
Emoções indefiníveis me agitam – inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração. Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão.
Trecho do livro São Bernardo, de Graciliano Ramos.

Bom conselho

Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança

Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio vento na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade
Música: Bom conselho, de Chico Buarque/1972
Para o filme "Quando o carnaval chegar" de Cacá Diegues

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Apelo

 

 Dos olhos desfez a última chama 
e da paixão fez-se o pressentimento 
e do momento imóvel fez-se o drama. 
De repente, não mais que de repente, 
fez-se de triste o que se fez amante 
e de sozinho o que se fez contente.
 Trecho do Soneto da separação, de Vinícius de Moraes







Música: Apelo
Intérpretes: Vinícius de Moraes, Toquinho e Bethânia

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Negócio

A rua deserta
O silêncio
O vazio
O frio
Um carro
O desconhecido
Me aproximo...
Negócio
É o que eu,
trava montada,
faço na esquina às 3 da matina
Vida dura sem-vergonha!
Sustento da família destruída
À qual não me aceita,
à qual não pertenço
Negócio...
Nego ócio
Negocio cio.
"Negócio", de Francesca de L. Martins.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

Ferreira Gullar.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Saudade de ti, minha vida


Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém que o que mais queremos é tirar esta pessoa de nossos sonhos e abraçá-la.
Clarice Lispector.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Sou mulher

Não sou certinha, não sou calma, não penso uma coisa só, o sangue me corre quente, sou da briga e quero brigar, dou risada alto, falo baixo, tenho explosões de alegria e fico muito, muito triste.
Trecho do livro "Uma Vida Inventada: memórias trocadas e outras histórias", de Maitê Proença.

sábado, 4 de setembro de 2010

A sonhadora

Ao contrário do que aconteceu com Alice, ela tinha a plena certeza de estar sonhando.

Nada ao redor indicava isso, mas ela sabia que nada daquilo era real. No bar, as pessoas andavam espremidas, erguendo garrafas de cerveja pro alto e infectando todo o ambiente com suas risadas lindas e mesquinhas. Tudo era sóbrio demais para um sonho, mas ainda sim – ainda assim – ela sabia.

Sentou-se à mesa. Amigos contavam histórias, distribuíam cigarros. Uma mesa cheia e falante. Quem não gosta disso? Ela nem ligava. Não participava do festejo. Não prestou um mínimo de atenção sequer na conversa que não existia na realidade que ela estava acostumada a viver e de onde estava determinada a fugir. Ela se perdeu naquele sorriso.

Tinha os olhos tão negros que refletia qualquer coisa em qualquer ambiente, menos suas intenções. Olhos grandes e amparados por femininas maçãs douradas que protegiam aquele narizinho empinado e enfezado. Era assim que ela era. Sempre foi. E assim ela se fazia no tal sonho. Era como ela queria aparecer praquele sorriso. Levantou-se e foi sonhar.

O rapaz de camisa listrada estava com a vista perdida pra janela, num determinado ponto que escapava da multidão que se apertava pra passar de lá pra cá, entre berros e cantorias. “Que tanto festejam? Não veem que é apenas um sonho?”. Ele também sabia ser parte do inconsciente e isso o incomodava. Queria tomar as rédeas. Foi o que fez quando se armou e fixou o sorriso nos tais olhos negros. Esperou calmamente ela se levantar, toda curiosa de tudo, esperou ela se aproximar, arrumando os cabelos despretensiosamente num prendedorzinho enfeitado de flor e esperou ela sorrir também. Aí quem começou a sonhar foi ele.

Ela queria ser durona, queria mostrar que sabia o fim de tudo, que acordaria antes mesmo do ápice do sonho acontecer. No entanto, foi tomada por aquele sorriso bobo de garoto convencido e não queria mais voltar. Pra nada. Não queria sair daquele bar quente e abafado nunca mais. Não sem ele. E ele? Ele não sabia de mais nada. Se antes era nada mais que uma personagem pronta para se anuviar num acordar qualquer, podia agora ser eterno naquele vaporoso conto noturno.

Ela dizia e desdizia sobre sua vida, sobre os dissabores daquela realidade que não condizia mais com seu querer. Não chegava a assumir que estava se jogando de cabeça naquele universo nascente, mas deixava transparecer toda sua excitação em conhecer tudo de novo. Ele, parte daquele simulacro, estava atado aos cabelos dela, nos cadarços do tênis azul que ela adorava calçar, seus olhos estavam magnetizados no pescoço dela, nos ombros dela. Tinha completa noção de que estava perfeitamente livre, mas se fazia acreditar que era ela a prendê-lo e não a si próprio.

A companhia era tão boa que ela esqueceu o acordar. Perdeu o dia de trabalho, perdeu o metrô lotado, não ouviu nos fones de ouvido a música cubana que tinham lhe indicado dias antes. E ele?

Como haveria de ser, o rapaz de camisa listrada – antes tão efêmero quanto aquele sonho – se sentiu tão vivo que percebeu o coração pulando uma batida, enterrado naqueles olhos negros. 
A sonhadora, por Jader Pires.
http://papodehomem.com.br/a-sonhadora/

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O pavão

Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz do teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
Rubem Braga.
Texto extraído do livro “Ai de ti, Copacabana”, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 149.

Recordar


"...vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi."
Machado de Assis.

Madalena

As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta. Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vão apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me, rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.
Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-a, sinto um arrepio. A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa. Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue. De longe em longe sento-me, fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:
– Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.
A agitação diminui.
–Estraguei a minha vida estupidamente.
Trecho do livro São Bernardo, de Graciliano Ramos.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Amo-te



Liberdade na vida é ter um amor para se prender.
Fabrício Carpinejar.

Aceitação

É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
e sentir passar as estrelas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar,
nem tu.

Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.
Cecília Meireles.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O que será - 1976

 
"O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar..."

Musica: O que será (À flor da pele)
Intérpretes: Chico Buarque e Milton Nascimento
Composição: Chico Buarque