terça-feira, 31 de agosto de 2010

Sentir é estar distraído

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe. 

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela unica grande razão -
Porque não tinha que ser. 

Consolei-me voltando ao sol e a chuva,
E sentando-me outra vez a porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.
Alberto Caeiro.
Alberto Caeiro (16 de Abril de 1889 - 1915) é considerado o Mestre Ingénuo dos heterônimos e do próprio Fernando Pessoa, apesar da instrução primária.

Amor e respeito

Você não brinca com uma criança ou colore uma figura com ela para mostrar sua superioridade. Pelo contrário, você escolhe se limitar para facilitar e honrar o relacionamento. Você é capaz de perder uma competição como um ato de amor. Isso não tem nada a ver com ganhar ou perder, e sim com amor e respeito. 
Trecho do livro A Cabana, de William P. Young.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O tremular das chamas

No vácuo de mim eu me despenco. Porque seria preciso também abdicar de mim mesmo para novamente reconstruir-me. Tornar a escolher os gestos, as palavras, em cada momento decidir qual dos meus eus assumir. Já esfacelei meu ser, já escolhi as porções que me são convenientes esquecendo deliberado as outras. E são elas - serão elas? - que agora se movimentam revoltadas, pedindo passagem em gritos mudos, na ânsia de transcender limites, violentar fronteiras, arrebentando para a manhã de sol. O tremular da chama é um aceno, convite para chegar à verdade última e íntima de cada coisa.
Não quero. Não posso restar nu, despojado de mim mesmo. Não posso recomeçar porque tudo soaria falso e inútil. As minhas verdades me bastam, mesmo sendo mentiras. Não é mais tempo de reconstruir.
Em luta, meus ser se parte em dois. Um que foge, outro que aceita. O que aceita diz: não. Eu não quero pensar no que virá: quero pensar no que é. Agora. No que está sendo. Porque pensar no que ainda não veio é fugir, buscar apoio em coisas externas a mim, de cuja a existência não posso duvidar porque não a conheço. Pensar no que está sendo, ou antes, não, não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar nela significa viver.
Sôfrego, torno a anexar a mim esse monólogo rebelde, essa aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, não derrubar. De que não sabe que esse prolongado construir implica em erros, e saber viver implica em não valorizar esses erros, ou suavizá-los, distorcê-los ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja abalado. Basta uma pausa, um pensamento mais prolongado para que tudo caia por terra. Recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa única existência. Por isso me esquivo, deslizo por entre as chamas do pequeno fogo, porque elas queimam. E queimar também destrói...
Caio Fernando Abreu.

domingo, 29 de agosto de 2010

Ama-se

Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera.
Trecho de Crônica do Amor, de Arnaldo Jabor.

Vem comigo?

Entre por essa porta agora
E diga que me adora
Você tem meia hora
Pra mudar a minha vida
Vem, vambora
Que o que você demora
É o que o tempo leva

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Dentro da noite veloz

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Na cinza das horas
Música: Vambora
Intérprete: Adriana Calcanhotto

sábado, 28 de agosto de 2010

Fúria amorosa

Aqueles beijos, não é possível que os gere duas vezes o mesmo lábio, porque onde nascem queimam, como certas plantas vorazes que passam deixando a terra maninha e estéril. Quando ela colou a sua boca na minha pareceu-me que todo o meu ser se difundia na ardente inspiração; senti fugir-me a vida, como o líquido de um vaso haurido em ávido e longo sorvo. Havia na fúria amorosa dessa mulher um quer que seja na rapacidade da fera.
Trecho do livro Lucíola, de José de Alencar.

Te espero


Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos meus.
Trecho da poesia A ausente, de Vinicius de Moraes.

Tenho frio e ardo em febre!

 "E tremo à mezza state, ardendo inverno"
Petrarca
Tenho frio e ardo em febre!
O amor me acalma e endouda! O amor me eleva e abate!
Quem há que os laços, que me prendem, quebre?
Que singular, que desigual combate!
 

Não sei que ervada flecha
Mão certeira e falaz me cravou com tal jeito,
Que, sem que eu a sentisse, a estreita brecha
Abriu, por onde o amor entrou meu peito.

O amor me entrou tão cauto
O incauto coração, que eu nem cuidei que estava,
Ao recebê-lo, recebendo o arauto
Desta loucura desvairada e brava.

Entrou. E, apenas dentro,
Deu-me a calma do céu e a agitação do inferno...
E hoje... ai de mim!, que dentro em mim concentro
Dores e gostos num lutar eterno!

O amor, Senhora, vede:
Prendeu-me. Em vão me estorço, e me debato, e grito;
Em vão me agito na apertada rede...
Mais me embaraço quanto mais me agito!

Falta-me o senso: a esmo,
Como um cego, a tatear, busco nem sei que porto:
E ando tão diferente de mim mesmo,
Que nem sei se estou vivo ou se estou morto.

Sei que entre as nuvens paira
Minha fronte, e meus pés andam pisando a terra;
Sei que tudo me alegra e me desvaira,
E a paz desfruto, suportando a guerra.

E assim peno e assim vivo:
Que diverso querer! Que diversa vontade!
Se estou livre, desejo estar cativo;
Se cativo, desejo a liberdade!

E assim vivo, e assim peno:
Tenho a boca a sorrir e os olhos cheios de água;
E acho o néctar num cálix de veneno,
A chorar de prazer e a rir de mágoa.

Infinda mágoa! Infindo
Prazer! Pranto gostoso e sorrisos convulsos!
Ah! Como dói assim viver, sentindo
Asas nos ombros e grilhões nos pulsos!
Poesia "Tenho frio e ardo em febre!", de Olavo Bilac.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Quentes, por favor



"Um café e um amor. Quentes, por favor."
 Autor Desconhecido.

O bordado pelo avesso

A viagem prosseguia morna e o tempo se esticava. Olhar pela janela dava uma aflição. A paisagem estorricada, a sequidão dos riachos, os arremedos de bichos a farejar qualquer esboço de pasto. O sol das quase três horas derretia-lhe a maquiagem. Faltavam ainda uns bons quilômetros. Retocava os lábios, os lados do rosto, queria parecer bem. Poucas poltronas ocupadas, um silêncio de dar dormência. Quinze anos sem dar notícias. Um suspiro, uma ligação, a morte da mãe anunciada. Decidiu então voltar, rever a casa materna, engolir as mágoas. Empurrava os seios com força, arrumava-se na poltrona, cruzava as pernas, sacudia os cabelos.
A vermelhidão das horas riscava o horizonte. A modorra lhe trazia o velho pai. Seu Estênio, olhar grosso, sobrancelhas grudadas. Sobreveio o dia em que parou a lida para improvisar um penteado numa espiga de milho. Apanhou para a vida toda. O pai, dizem, morreu de desgosto, quando, no caminho da cacimba, flagrou os dois primos. De nada adiantou bater, xingar, amarrar no pé da cama. Quando é para se soltar, não tem quem segure. O velho não resistiu. Adoeceu, prostrou-se e dias depois morreu.
Ainda jovem, decidiu sair de casa. Tinha sede de mundo. A mãe, D. Felícia, de alguma forma entendia, mesmo calada, consentindo com o olhar distante, perdida no terreiro, tangendo as galinhas. Vivia do marido, que a tirou da família ainda moleca, numa partilha de gado. De dia, era tratada como uma criada, com tudo pronto na hora certa. De noite, o velho se chegava, fétido dos bichos, e a embuchava. As crias não vingavam. Cinco sequer vieram ao mundo. Dois saíram cedo demais e viraram anjos. Olhando pela janela, sentia-se sobrevivente. Agora a mãe, próxima, traços delicados, tornava-se um remorso. Tempo demais sem dar notícias. Era tarde.
Saiu da brenha para as terras do Sul com as roupas do corpo e uma escolha. Prostituiu-se em postos de gasolina, conheceu toda espécie de homens, até se agüentar como manicure em São Paulo. A vaidade era a única virtude que lhe restava. Os cabelos vinham na cintura, as unhas vermelho-sangue, o carmim, as lentes cor-de-mel. Por onde passasse, um assobio distante, uma piadinha. Olhando pela janela, a beleza refletida, o tempo cuspia-lhe a cara.
- Quem vai descer na Passagem da Onça!
Tanta exuberância atrapalhava os movimentos. O salto agulha, a insegurança nos passos, o olhar inquiridor dos passantes. Não trazia bagagem, só uma bolsa tiracolo. Apanhou uma moto-táxi, não tinha segurança do caminho.
- O sítio de D. Felícia, por favor!
Puxou o vestido, aprumou-se na moto e, aos poucos, começou a reconhecer a trilha. O açude do Traguçu, a cancela da fazenda dos Mota, a velha cacimba, agora desativada.
- D. Felícia era mulher boa, decente, não merecia tanta solidão...
- Com certeza!
A porta do sobradinho era familiar. O chão de cimento queimado, o forno de pedra, os quadros em feitio oval. O quarto, o cheiro. Da janela, o mesmo vazio que a mãe sempre procurava. Sentou-se diante da penteadeira, os frascos vazios de perfumes, os gavetões emperrados, o espelho. O tercinho da mãe. Sempre se apegava ao tercinho, quando o velho Estênio dava de surrar quem estivesse na frente. Retocou a maquiagem, apanhou o terço e saiu.
O vestido esvoaçava, o salto afundava na piçarra mole. Tinha chovido. Tirou os sapatos, jogou na ribanceira.
- Pra que lado fica o cemitério, seu moço?
- Depois do matadouro.
Que ironia, um cemitério e um matadouro. Caim e Abel. Riu-se. Apertou o passo, o calor era insuportável. Na entrada do cemitério, um senhor enfiado no chapéu apontou o lugar. Felícia Neves de Araújo.
Não havia mais nada a fazer. Apertou com força o terço. Esticou o pescoço. Ninguém no cemitério. Pouco a pouco foi se desfazendo. Tirou as unhas postiças, os cílios, limpou o batom. Enfiou a mão no vestido e sacou o enchimento do sutiã. Por fim, puxou a peruca e jogou no tempo.
Da tiracolo, um revólver. O cano na boca, um disparo. Umas galinhas ciscando tomaram um susto. Continuaram a bicar a terra.
"O bordado pelo avesso", de Sinval Farias.
http://profsinvalfarias.blogspot.com/

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Chocolamor



Tudo que você realmente precisa é amor, e um pouco de chocolate.
Lucy van Pelt.

Paradoxo


Não falei que tô apaixonado por ela, simplesmente disse que gosto muito do chão que ela pisa.
Linus van Pelt.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Paisagem na janela

Para Pedro Xudré, meu amado amigo.
Decidi pintar um quadro. Uma tela rica; viva. Com todas as cores, alegrias e tristezas, espinhos, flores e bolhas translúcidas de sabão. Decidi compor um quadro, um quadro intangível feitos por minhas mãos. Sem pincel, sem tinta, sem tela. Que a tela seja a vida, as cores o que sinto. Minha essência. Tantos sonhos, tantas quimeras, primaveras. Não, não me acorde. Que o sonho seja realidade incontestável, e do sonho eu não venha a despertar. Decidi pintar um quadro, pois hoje o céu está azul, meu coração está alegre e a esperança é luminosa como o sol e seus reflexos de ouro. Respiro, sinto, toco a tela e percebo que antes de decidir pintar este quadro, ele já habitava minha mente, sendo assim, ele já existia antes mesmo de existir. Entende? Nem eu. É irracional, não necessita da razão para existir. O tempo passa, e o quadro é a obra completa esperando a completude, o por vir. O pincel corre sobre a tela, cora, brinca, ama, sussurra palavras de amor, palavras. E tudo veio a existência através da palavra: o sorriso, o gesto, o momento mais bonito foi desenhado por palavras. Estou alegre, mas a cor não é azul, é vermelho, vermelho-paixão. Estou apaixonada pelas cores, pelas flores, pelas alvoradas. Decidi pintar um quadro, para te mostrar com um sorriso de criança o que pintei pra ti. 
"Paisagem na Janela", de Francesca Martins.

Predicados

 

Aquela menina é tão linda… E ainda por cima tem cheiro de papelaria.
Linus van Pelt.


terça-feira, 24 de agosto de 2010

Vivos, vermelhos

Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos. Achava que sim. Que sim. Sim. 
Trecho do livro Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu.

Tudo errado

Fico tão cansada às vezes, e digo pra mim mesma que está errado, que não é assim, que não é este o tempo, que não é este o lugar, que não é esta a vida. E fumo, e fico horas sem pensar absolutamente nada.
Caio Fernando Abreu.

Abandono

Você vai me abandonar e eu nada posso fazer para impedir. Você é meu único laço, cordão umbilical, ponte entre o aqui de dentro e o lá de fora. Te vejo perdendo-se todos os dias entre essas coisas vivas onde não estou. Tenho medo de, dia após dia, cada vez mais não estar no que você vê. E tanto tempo terá passado, depois, que tudo se tornará cotidiano e a minha ausência não terá nenhuma importância. Serei apenas memória, alívio, enquanto agora sou uma planta carnívora exigindo a cada dia uma gota de sangue seu para manter-se viva. Você rasga devagar o seu pulso com as unhas para que eu possa beber. Mas um dia será demasiado esforço, excessiva dor, e você esquecerá como se esquece um compromisso sem muita importância. Uma fruta mordida apodrecendo em silêncio no quarto.
Caio Fernando Abreu .

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Convite



"Brinque com meu fogo, venha se queimar... "
Música: Bom Conselho | Compositor: Chico Buarque

Il principe ignoto

Nessun dorma!...
Tu pure, o Principessa,
Nella tua fredda stanza
Guardi le stelle
Che tremano d'amore e di speranza.
Ma il mio mistero è chiuso in me,
Il nome mio nessun saprà!
Solo quando la luce splenderà,
Sulla tua bocca lo dirò fremente!...
Ed il mio bacio scioglierà il silenzio
Che ti fa mia!...
Voci di donne
Il nome suo nessun saprà...
E noi dovremo, ahimè, morir!...
Il principe ignoto Dilegua, o notte!...
Tramontate, stelle!...
All'alba vincerò!...
"Nessun dorma" ("Ninguém durma", em italiano) é uma ária do último ato da ópera Turandot, de Giacomo Puccini.

(des)Humanidade

Não digam nunca: isso é natural! Diante dos acontecimentos de cada dia, numa época em que reina a confusão, em que corre o sangue, em que o arbítrio tem força de lei em que a humanidade se desumaniza, não digam nunca: isso é natural! Para que nada possa ser imutável!
Bertold Brecht.

17 de outubro de 1936

Queridos:
   Amanhã vou precisar de toda a minha força e de toda a minha vontade. Por isso, não posso pensar nas coisas que me torturam o coração, que são mais caras que a minha própria vida. E por isso me despeço de vocês agora. É totalmente impossível para mim imaginar, filha querida, que não voltarei a ver-te, que nunca mais voltarei a estreitar-te em meus braços ansiosos.
Quisera poder pentear-te, fazer-te as tranças - ah, não, elas foram cortadas. Mas te fica melhor o cabelo solto, um pouco desalinhado. Antes de tudo, vou fazer-te forte. Deves andar de sandálias ou descalça, correr ao ar livre comigo. Sua avó, em princípio, não estará muito bem. Deves respeitá-la e querê-la por toda a tua vida, como teu pai e eu fazemos. Todas as manhãs faremos ginástica... Vês? Já volto a sonhar, como tantas noites, e esqueço que esta é a minha carta de despedida. E agora, quando penso nisto de novo, a idéia de que nunca mais poderei estreitar teu corpinho cálido é para mim como a morte.
   Carlos, querido, amado meu: terei que renunciar para sempre a tudo de bom que me destes? Conformar-me-ei, mesmo que não pudesse ter-te muito próximo, que teus olhos mais uma vez me olhassem. E queria ver teu sorriso. Quero-os a ambos, tanto, tanto. E estou tão agradecida à vida, por ela haver-me dado ambos. Mas o que eu gostaria era de poder viver um dia feliz, os três juntos, como milhares de vezes imaginei. Será possível que nunca verei o quanto orgulhoso e feliz te sentes por nossa filha?
   Querida Anita, meu querido marido, meu Garoto: choro debaixo das mantas para que ninguém me ouça, pois parece que hoje as forças não conseguem alcançar-me para suportar algo tão terrível. É precisamente por isso que esforço-me para despedir-me de vocês agora, para não ter que fazê-lo nas últimas e difíceis horas. Depois desta noite, quero viver para este futuro tão breve que me resta. De ti aprendi, querido, o quanto significa a força de vontade, especialmente se emana de fontes como as nossas. Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo. Prometo-te agora, ao despedir-me, que até o último instante não terão por que se envergonhar de mim. Quero que me entendam bem: preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. Mas, no entanto, podem ainda acontecer tantas coisas... Até o último momento manter-me-ei firme e com vontade de viver. Agora vou dormir para ser mais forte. Beijo-os pela última vez.
Olga.


Carta escrita à lápis, no dia 17 de outubro de 1936. Olga Benário morre em uma câmara de gás em 1942. A última carta de olga foi dirigida ao líder comunista brasileiro Luis Carlos Prestes. Foi escrita em Ravensbrück, na noite da viagem que a levaria а morte em Bernburg.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Novo amor

Um novo amor desorganiza a casa.  Não se acredita no que está vivendo para se acreditar mais. A reação inicial é a da incredulidade: ele não gosta de mim, é só amizade, não estamos juntos. Mas dentro ressoa o contrário: ele gosta de mim, é mais do que amizade, já estamos juntos. Os pensamentos brincam de esconde-esconde. Esconder o que se sente para os próximos, mas mostrar para si o que se conquistou. Jogo de convencimento, devagar e sensível. Logo bate a covardia: seremos enganados, não dará certo. Em seguida, a coragem revida: ele é sincero, dará certo.

Somos nossos piores amigos, nossos melhores conselheiros. É uma insegurança tensa. Será que ele está pensando em mim? Será que ele me deseja a ponto de não fazer outra coisa? Não se admite experimentar sozinho o estado de paixão. Há uma gana pela cumplicidade. Não se entra na briga sem a recompensa de se descobrir acompanhada.

A comparação torna-se inevitável. Fica-se a sondar sua intimidade e estudar seus sinais e caligrafia. Em algum momento, deve ter deixado claro que me ama e se busca a confirmação. Revisam-se as cartas, as mensagens, os recados.  Mas não há ajuda, não há clareza no amor, tudo é falado com ambigüidade. Não se arriscam certezas. As certezas são duras e frias. As certezas agridem. O que ele escreveu pode significar ternura. Não significa que está a fim.

Flutua-se no balbucio, no nervosismo até o próximo encontro, em que será possível identificar sua intenção. Mas nenhum encontro futuro vai assegurar o amor. A convivência não esgota o desconhecido.

Fica-se a relembrar a ordem das palavras ditas, inclusive a ordem das palavras não-ditas. Evoca-se a seqüência das risadas e a confusão dos gemidos. São refeitas as contas, muda-se o método de enumerar e não se chega a nenhuma conclusão. Resta o mesmo resultado, a mesma indefinição infantil. Ele me ama ou não me ama? A impressão é que emburrecemos progressivamente, nada presta ou nos prende. Dispersivos, desenhamos apenas corações, florzinhas, estrelas e chapéus nos papéis amarelos. Esquece-se o vocabulário.  Pioramos o raciocínio desde que se tentou definir o amor.  Já estamos sofrendo antes mesmo de amar.

Fazemos de conta que ele não existe para se surpreender depois. Fingimos que ele não entrou em nossa vida para suspirar com sua aparição. Guardamos sua foto no nosso quarto, voamos para sala e não agüentamos, voltamos para vê-la de novo, para confrontá-la com nossa imaginação. E dormiremos cedo para enganar a fom
e.
"Novo amor", de Fabrício Carpinejar. 

domingo, 8 de agosto de 2010

A voz do silêncio

É tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar. Olhei pra você fixamente por instantes. Tais momentos são meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade.
Clarice Lispector.

Coração de criança

O Senhor pode conferir. Eu fiz tudo certo, só errei quando coloquei sentimento. Só fiz bobagens e me dei mal quando ouvi este louco coração de criança que insiste em não endurecer e, se recusa a envelhecer.
Clarice Lispector.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Enquanto houver ar

E minha vida (...) responde que devo lutar como quem se afoga, mesmo que eu morra depois.
Trecho de A Hora da Estrela, Clarice de Lispector.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Fumo

Longe de ti são ermos os caminhos,  
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas…
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram… choram…
Há crisântemos roxos que descoram…
Há murmúrios dolentes de segredos…

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!…
"Fumo", de Florbela Espanca.

Humano

À natureza profunda do ente humano repugna ver-se isolada do convívio dos seus semelhantes, e o pior de todos os castigos é aquele que fere a nossa natureza profunda.
Rachel de Queiroz.