sábado, 24 de abril de 2010

Para que ninguém a quisesse

Porque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que descesse a bainha dos vestidos e parasse de se pintar. Apesar disso, sua beleza chamava a atenção, e ele foi obrigado a exigir que eliminasse os decotes, jogasse fora os sapatos de saltos altos. Dos armários tirou as roupas de seda, da gaveta tirou todas as jóias. E vendo que, ainda assim, um ou outro olhar viril se acendia à passagem dela, pegou a tesoura e tosquiou-lhe os longos cabelos.
Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas vezes, homem nenhum se interessava por ela. Esquiva como um gato, não mais atravessava praças. E evitava sair.
Tão esquiva se fez, que ele foi deixando de ocupar-se dela, permitindo que fluísse em silêncio pelos cômodos, mimetizada com os móveis e as sombras.
Uma fina saudade, porém, começou a alinhavar-se em seus dias. Não saudade da mulher. Mas do desejo inflamado que tivera por ela.
Então lhe trouxe um batom. No outro dia um corte de seda. À noite tirou do bolso uma rosa de cetim para enfeitar-lhe o que restava dos cabelos.
Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais em lhe agradar. Largou o tecido em uma gaveta, esqueceu o batom. E continuou andando pela casa de vestido de chita, enquanto a rosa desbotava sobre a cômoda.
"Para que ninguém a quisesse", de Marina Colasanti. Extraído do livro: Contos de amor rasgados.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Noite Insone

São quase onze. O tic-tac do relógio soa seco enquanto as horas se arrastam preguiçosamente. O silêncio que ecoa pela casa é ensurdecedor... Presságios de mais uma noite insone.

Decidi então me sentar no chão frio do quarto, defronte a janela, e escrever. Escrever meio sem rumo, para passar o tempo e ver o sono chegar de mansinho. Escrever para enfim colocar em palavras o que me inquieta a alma.

Não escrevo para ti Clarice. Não escrevo para ninguém.

Talvez eu escreva - em desabafo - para a Saudade. Esta elegante dama que vem visitar-me todas as noites, desde que você partiu. A Saudade vem ao meu encontro, cingida por um belíssimo manto negro adornado de estrelas, meigos olhos de luar e um pequeno-sorriso-triste... Sempre triste.

A quem quero enganar? A mim mesmo? A Saudade?

Não escrevo para a Saudade, pois esta já conhece meu tormento. Escrevo para ti Clarice. Confesso que na esperança - sempre vã - de te ver chegar, cumpro todas as noites o mesmo ritual, deixando sempre a porta do quarto aberta. E por esta mesma porta a Saudade entra, e me faz companhia. Como agora: Enquanto escrevo, ela me observa. Não diz palavra alguma. Apenas me olha, e entende o meu silêncio.

No desabrochar destas noites insones, quando o meu perigo aumenta, é ela quem me acalenta, que me envolve num abraço cheio de lembranças perfumadas com a tua essência. Caio tinha razão quando me disse: "...chorarás desamparado atravessando madrugadas em tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar alheio pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dela, em algum cheiro o cheiro preciso dela".

Recebi as cartas que me enviaste Clarice. Confesso que não entendo o porquê destas não possuírem remetente, nem assinatura. Como descobri que são tuas? Ah! O doce perfume que exala de cada página, tua caligrafia perfeita, e o teu português excelentíssimo são inconfundíveis. Você me fala de sua nova vida, de seu recomeço, e sobre como os teus dias tem sido difíceis. Passei dias a chorar tuas dores, minha querida.

Mas, por favor, permita-me neste momento ser um tanto egoísta e falar somente da minha Saudade, a chorar somente a minha dor, e te dizer como me sinto. Permita-me não te ouvir falar de suas angustias, nem de como foi seu dia, ou como você chora olhando a chuva cair por sobre as noites frias. Quero apenas que me escute, que me leia com atenção.

Estou cansado. Sinto dores. Lágrimas não choradas e uma tristeza que não posso - e nem quero - comunicar a ninguém. Sinto sua falta. Me dói a tua ausência. Falta-me a alegria do teu sorriso, o mel da tua voz, o chocolate-quente dos teus olhos, o calor do teu abraço e a ternura-paixão dos teus beijos. Tentei esquecer-te, mas inevitavelmente me lembro de ti. Pois é impossível não notar a ausência do teu prato sobre a mesa, do teu cheiro pela casa, das tuas roupas pelo chão. E mesmo tentando não sentir tua falta, simplesmente a sinto.

A porta continua aberta minha querida.
Sempre teu,
Gurgel.
"Noite Insone", de Francesca de L. Martins.

sábado, 17 de abril de 2010

Aurora



Vem Aurora!
Pois é chegada a treva.
Noite insone, noite fria, noite vazia.
Desponta minha Aurora!
Doce e terna Aurora.
Vem, e ilumina-me com a luz do teu sorriso.
Francesca de L. Martins.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Tercetos

I
Noite ainda, quando ela me pedia
Entre dois beijos que me fosse embora,
Eu, como os olhos em lágrimas, dizia:

“Espera ao menos que desponte a aurora!
Tua alcova é cheirosa como um ninho…
E olha que escuridão há lá por fora!

Como queres que eu vá, triste e sozinho,
Casando a treva e o frio de meu peito
Ao frio e à treva que há pelo caminho?

Ouves? é o vento! é um temporal desfeito!
Não me arrojes à chuva e à tempestade!
Não me exiles do vale do teu leito!

Morrerei de aflição e de saudade…
Espera! até que o dia resplandeça,
Aquece-me com a tua mocidade!

Sobre o teu colo deixa-me a cabeça
Repousar, como há pouco repousava…
Espera um pouco! deixa que amanheça!”

— E ela abria-me os braços. E eu ficava.


II
E, já amanhã quando ela me pedia
Que de seu claro corpo me afastasse,
Eu, com os olhos em lágrimas, dizia:

“Não pode ser! não vês que o dia nasce?
A aurora, em fogo e sangue, as nuvens corta…
Que diria de ti quem me encontrasse?

Ah! nem me digas que isso pouco importa!…
Que pensariam, vendo-me, apressado,
Tão cedo assim, saindo a tua porta.

Vendo-me exausto, pálido, cansado,
E todo pelo aroma de teu beijo
Escandalosamente perfumado?

O amor, querida, não exclui o pejo…
Espera! até que o sol desapareça,
Beija-me a boca! mata-me o desejo!

Sobre o teu colo deixa-me a cabeça
Repousar, como há pouco repousava!
Espera um pouco! deixa que anoiteça!”

— E ela abria-me os braços. E eu ficava.
Poema “Tercetos”, de Olavo Bilac.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Complexa


Eu nunca aceitei a simplicidade do sentimento. Eu sempre quis entender de onde vinha tanta loucura, tanta emoção.    Tati Bernadi.

Tudo será em nós

Há mais que o simples ser em cada coisa.
Mesmo quando nada mais for,
tudo será em nós,
e saberemos descobrir o verso oculto até nos mais desprezados objetos.
Então, de toda a Poesia
se fará um só Poema.
Conosco todas as coisas serão chamadas,
e cada um responderá em nós,
porque todo minuto de cada espaço
está fixado no Eterno,
e há mais que o simples ser em cada coisa.
"Há mais que o simples ser em cada coisa". Poema extraído do livro Notícias de Bordo, de Linhares Filho.

sábado, 10 de abril de 2010

The blower's daughter

Música: The Blower's Daughter | Compositor/Intérprete: Damien Rice

Melancolia

Hoje estou longe do mar, mas suas cores todas as trago dentro de mim feito um verso não escrito, um beijo de amor interrompido, um sonho de que despertei cedo demais. Entanto, há esta taça de vinho ao alcance da mão e toda a solidão que carrego nesse momento em que, aos poucos, me reencontro longamente comigo mesmo. Claro que hoje estou melancólico como quem foi traído de amor e cuja alma rescende a bolores. De onde estou sempre vejo o mar por mais longe que ele esteja. Por vezes, suas espumas, dolorosas, feito um bordão plangente, se tornam tecelãs impiedosas do meu desavim.

Daí, bebo do vinho, vejo um filme de Oscarito, ouço canções de Carnaval, danço um tango argentino, leio poemas fesceninos, ligo para os amigos do peito e lhes imploro que me contem piadas obscenas para que se desate em mim a gargalhada liricamente redentora. Claro que agora já não estou tão melancólico, tão desencantado de mim mesmo quanto dantes, pois o que sou jamais além me escrevo. O mar não é mais somente o lamento carpido de mulheres de finados pescadores, mas uma bem-aventurança indizível que me assalta o coração numa tarde encantada de um dia qualquer.

Uma lua cheia começa a despontar no céu com o mesmo brilho amarelado dos olhos do grande gato gordo que vive a caçar pombos invisíveis no telhado em frente. Talvez esse grande gato gordo, eterno soberano dos telhados e dos mistérios noturnos, seja uma metáfora de mau gosto de mim mesmo, eu, suburbano caçador de palavras que me explicam e não explicam o mundo. Sei que não há nenhuma palavra que explique o mundo, pelo menos da maneira como eu queria. A melancolia não passa de um mero reflexo dessa minha natural incompetência existencial.

Ora, pois, pois. A vida é tão pequena e seus acúmulos, se por acaso os houver, não são somente de dor, porém de tudo, de tudo. Sim, repito: de tudo. Acendo um cigarro, tão estúpido que sou, escrevo frases que nem sei de onde me chegam feito um milagre eternamente repetido e que, maravilhosamente, ainda consegue me assombrar e iluminar a alma. Gosto de brincar com palavras, erguer com elas meus castelos de cartas como antigamente construía castelos de areia na beira da praia. Eu continuo sendo aquele menino de olhos encantados com o mundo. Para sempre.
Crônica Melancolia, de Airton Monte.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Nem morri


Oficializar o já acontecido: perdi um pedaço, tem tempo.
 E nem morri.
 Caio Fernando Abreu.

domingo, 4 de abril de 2010

Meu Deus, me dê coragem


Faça com que a solidão não me destrua. Faça com que minha solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.     Clarice Lispector.

Última chama

Dos olhos desfez a última chama e da paixão fez-se o pressentimento e do momento imóvel fez-se o drama. De repente, não mais que de repente, fez-se de triste o que se fez amante e de sozinho o que se fez contente.
Trecho do Soneto da separação, de Vinícius de Moraes.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Dama da noite

"E sonho esse sonho que se estende em rua, em rua em rua em vão."
(Lucia Villares: Papos de Anjo) 


Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam para se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa roda-gigante. Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código, sei lá. Você fala qualquer coisa tipo bá, por exemplo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade de estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota - tá me entendendo, garotão? Nada, você não entende nada. Dama da noite, todos me chamam, e nem sabem que durmo o dia inteiro...
Levanta não, te pago outra vodca, quer? Só pra deixar eu falar mais na roda. Você é muito garoto, não entende dessas coisas. Deixa a vida te lavrar a cara, antes, então a gente. Bicho, esquisito: eu ia dizer alma, sabia? Quer que eu diga? Tá bom, se você faz tanta questão, posso dizer. Será que ainda consigo, como é que era mesmo? Assim: deixa a vida te lavrar a alma, antes, então a gente conversa. Deixa você passar dos trinta, trinta e cinco, ir chegando nos quarenta e não casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de ressaca, olhar sua cara arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no mundo. Vai doer tanto, menino. Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa para te aconchegar ao meu seio e te poupar essas futuras dores dilaceradas. Como queria tanto saber poder te avisar: vai pelo caminho da esquerda, boy, que pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha.
...Mas eu quero mais é aquilo que não posso comprar. Nem é você que eu espero, já te falei. Aquele um vai entrar um dia talvez por essa mesma porta, sem avisar. Diferente dessa gente toda vestida de preto, com cabelo arrepiadinho. Se quiser eu piro, e imagino ele de capa de gabardine, chapéu molhado, barba de dois dias, cigarro no canto da boca, bem noir. Mas isso é filme, ele não. Ele é de um jeito que ainda não sei, porque nem vi. Vai olhar direto para mim. Ele vai sentar na minha mesa, me olhar no olho, pegar na minha mão, encostar seu joelho quente na minha coxa fria e dizer: vem comigo. É por ele que eu venho aqui, boy, quase toda noite. Não por você, por outros como você. Pra ele, me guardo. Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo todo procuro o verdadeiro amor. Cuidado, comigo: um dia encontro.
Só por ele, por esse que ainda não veio, te deixo essa grana agora, precisa troco não, pego a minha bolsa e dou a fora já. Está quase amanhecendo, boy. As damas da noite recolhem seu perfume com a luz do dia. Na sombra, sozinhas. envenenam a si próprias com loucas fantasias. Divida essa sua juventude estúpida com a gatinha ali do lado, meu bem. Eu vou embora sozinha. Eu tenho um sonho, eu tenho um destino, e se bater o carro e arrebentar a cara toda saindo daqui continua tudo certo. Fora da roda, montada na minha loucura. Parada pateta ridícula porra-louca solitária venenosa. Pós-tudo, sabe como? Darkérrima, modernésima, puro simulacro.
Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega essa hora da noite eu me desencanto. Viro outra vez aquilo que sou todo dia, fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo: uma criança assustada.
Trechos extraídos do conto Dama da noite, de Caio Fernando Abreu.