segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Cidade sem luz

Uma cidade sem luz. Nada existe de mais dramático, pungente, arrepiante e triste. Principalmente se esse vilarejo se chama Forquilha e nele se mora na Rua do Passa - Nada. Quando a noite chega, desce o manto do mistério. Toda a gente se refugia em casa, em torno de velas, lamparinas e candeeiros, até o sono chegar, a espera do milagre da luz. Esta noite está assim. Completamente em trevas. Policarpo, o escrivão da Coletoria, maldizia, mais uma vez, o prefeito, que não conseguiu consertar a usina, e o instante em que resolvera morar naquele fim de mundo. Era noite e o escrivão se plantara à porta de sua casinhola, no nível da rua, a rua do Passa - Nada. Rua enorme, com raras casas e dezenas de terrenos baldios. Resolvera morar ali. Aluguel barato, casa fresca, ampla. Com o conforto da luz elétrica, quando a usina não resolvia implicar com a normalidade do povoado.

Acomodado em um tamborete, sem ver nada e sem ser visto, Policarpo emprestou os ouvidos ao silêncio, até que distingue uma luzinha de lanterna, à direita, bambolear lá longe. Quem será? Difícil descobrir. O escrivão ficou atento, olhos fixos na luz que se aproximava. Um distante som de esporas faz parceria com a luz. Esporas? Era ele, o prefeito.

A biografia do prefeito carece de ser contada em prosa e em verso. Como prestigioso cabo eleitoral, o atual dirigente da cidade tinha votos para decidir a sorte do pleito. A convite da oposição, bandeou de partido pela candidatura a prefeito. Elegendo-se brilhantemente, assim nasceu para a política o alcaide Romão Veloso. Bonitão, casadão, quarentão, espalhou esperanças até agora, quando topou com o primeiro problema: a luz. Defeito no gerador. Providenciou pecas em São Paulo, na rua Florêncio de Abreu. As pecas ainda não chegaram. Se chegaram, não serviram, e toca o povo a amargar a escuridão. A expectativa tornou-se exasperação, a exasperação em ódio. O ódio esta roendo o povo do vilarejo. Principalmente as mulheres acostumadas à novela da Radio Nacional e os homens, ao Repórter Esso. Toda a gente esta com saudade do Direito de Nascer e do Heron Domingues. Os cervejistas, condenados a lourinha quente, viraram feras. A fábrica de gelo, única indústria do lugar, fechada por falta de matéria-prima. O vigário está gastando um mundo de velas. Um dinheirão. O povo esta odiando o alcaide. E não e pra menos.

Policarpo, entregue a meditação, buscou encontrar alguma coisa boa em Forquilha. Resplandeceu fácil: Violeta. A viúva Violeta, o premio mais lindo do povoado, novinha em folha, espalha por onde passa perene nuvem perfumada. Jasmim. Em poucos lugares, pois Violeta sai pouco. Exibe o mínimo possível o seu corpo maravilhoso. A paixão silenciosa de Policarpo pela viúva chegou ao cumulo de fazê-lo escapar da Coletoria, ir até a casa do octogenário Crispim e de lá debruçar-se a janela sem ser visto, sobre o terreiro da deusa e assisti-la lavar a própria roupa. Encantava-se. Desculpava-se ao dono da casa com pretexto que dera uma saidinha para respirar o ar tranqüilo e confortante da vivenda. Tinha verdadeiras crises de êxtase ao assistir a Violeta dependurar no arame as suas calcinhas coloridas. Se a aragem tomasse o rumo da janela, a casa do velho se impregnava de jasmim. Era aquilo a única coisa amorável de Forquilha. Uma mulher, linda, séria, sem empenho de novo casamento, eleita como o único encanto de uma cidadezinha quieta e triste.

Tudo isso passa pela cabeça do escrivão quando vê a luz bruxuleante de uma lanterna e o tilintar de esporas na Rua Passa—Nada. Era ele mesmo. O prefeito. O odiado prefeito cruzando sozinho o caminho da solidão. Excomungado como anda, corre perigo de vida. Passa por Policarpo. Não nota nada ao seu redor. Vai rompendo a rua. O escrivão se assusta. Uma outra luz de lanterna vem em direção contraria. Um inimigo do prefeito, sem duvida. Morte certa ou entrevero grosso. As luzes se aproximam ate que se encontram. Uma se apaga e a restante some pelos cantos da rua deserta, ao que se deduz, mergulhou no terreno baldio. Por sinal, propriedade do prefeito, onde ele fez construir um casebre para abrigar material de construção. Orelha em pé, Policarpo procura ouvir algum estampido ou sinal de rixa. Nada. A curiosidade é demais para admitir que o escrivão possa abandonar o posto de observação.

Ali está há mais de hora fixado no negrume da noite. Uma novidade finalmente. Uma luz parece ressurgir do terreno baldio. Parece, não. Ressurge mesmo. Dança um pouco na mão de alguém. Seria o sobrevivente? Não, não era. Não houve rixa, nem houve morte. A certeza se delineia nesse minuto, quando a outra luz se acende. Há um dialogo dos focos. Depois, cada qual toma o seu rumo. Policarpo aguarda a luz que caminha na direção de sua casa. Vem ouvindo. Silênciosa. A outra se perde nos confins do lado de lá. E o prefeito que volta? Não, não é. Os fachos permutaram de trajeto. Não ha esporas no foco em retorno. Vem andando. Sem barulho. Aproxima-se. Está pertinho. Passa por ele e deixa uma ventania de jasmim a sua passagem. Um vulto perfumado segue o seu caminho. Canta baixinho “Adonde estas corazon”, um tango pleno de amor. De amor satisfeito enfeitando uma alma alimentada de ternura.

Lá do fundo, a esposa, Balbina, convoca:

— Policarpo. Vem deitar. Quando consertam o diabo dessa luz?
Ele, devorado pela inveja:
— Pelo visto, mulher, tão cedo a gente não tem luz...
Assoviando em surdina o mesmo tango, envolto pela brisa do mesmo perfume, ele foi embalar o seu sono cínico...
Conto Cidade sem luz, de Olavo Drummond. Livro: O vendedor de estrelas.

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