quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Preste atenção

 
É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta que ele termina. Não aprendi isso nos livros. Aprendi prestando atenção.
Rubem Alves.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Ed sempre

Um conto de dois mundos 
As fornalhas tingiam o céu de um amarelo esquecimento.
A cidade roncava na colina abaixo.
Menos um. Apenas um. Olhava esperançosamente por entre as ameias.
Um fruto de contentamento nascia de seu olhar. Eram duas da manhã.
Um novo dia já despontava em seu semblante. Para ele, novos dias longe dali, era tudo o que possuía.


O cargo que hoje exercia como capataz seria apenas um sonho, não, simplesmente um desconfortante devaneio tardio.

A mulher, erodida pelo tempo, que sedimentava sua cama e seu gozo, seria também apenas uma meada de algo que não foi. Apenas algo que nunca fora.

E as passadas das horas fazem trilhas pelas nuvens. São quatro da manhã.

Ainda fita o teto. Mas não é tijolo o que contempla, são possibilidades, são histórias não vividas. Senta. Esfrega os olhos. Sente. O tremor levemente toma-lhe o vigor das mãos. Já são quarenta e dois anos naquelas montanhas. Os óculos, onde estão? Não sabe. Mas conhece o paradeiro do medo. Aquele, de viver mais quarenta e tantos encarando o mesmo azedume do espelho, o charco em que havia transformado sua existência, algo que zombava daquilo que acreditavam ser a semelhança ao próprio Deus.

É. Havia o tempo.

Não tinha mais tempo. Precisava agir.

Seu destino, um copo d'água de torneira frente ao espelho algoz.

Navalha. Carne. Liberdade. Enquanto a vista escurecia, a mente ganhava a luz. A tão sonhada luz, fugidia daquela parte do mundo, do seu mundo.

Já não era mais velho, ou mesmo criança, era idéias, sonhos, esperanças. Apenas desígnios. O que sobrara, traçava ascendente rota sobre as choupanas. Podia sentir o vento ainda. O que foi um dia, não fazia mais questão, não se importava. Para ele, eternamente, só lhe valia o adiante.

E assim, seguiu-se o sempre daquele que em vida não o era mais do que aquilo que se tornara após a morte: sonhos, e bons sonhos.
Pedro Xudré.
http://xudre.tumblr.com/

Ausência

Quando pássaros debandam em revoada
Quando rios secam de caudalosa vida
Amor, foi uma partida, uma jornada
À Deus o tempo, adeus amada.
"Ausência", de Pedro Xudré.

Coragem

Nada em mim foi covarde, nem mesmo as desistências: desistir, ainda que não pareça, foi meu grande gesto de coragem.
Caio Fernando Abreu.

Mudança

Mudei muito, e não preciso que acreditem na minha mudança para que eu tenha mudado.
Caio Fernando Abreu

Meus gélidos espinhos

Algumas vezes eu fiz muito mal para pessoas que me amaram. Não é paranóia não. É verdade. Sou tão talvez neuroticamente individualista que, quando acontece de alguém parecer aos meus olhos uma ameaça a essa individualidade, fico imediatamente cheio de espinhos - e corto relacionamentos com a maior frieza, às vezes firo, sou agressivo e tal. É preciso acabar com esse medo de ser tocado lá no fundo. Ou é preciso que alguém me toque profundamente para acabar com isso. 
Caio Fernando Abreu.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Illudere

 
"Não me venha falar da malícia de toda mulher
Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é..."

Caetano Veloso.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Inscrição para uma lareira

A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!

Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida...
"Inscrição para uma lareira", de Mário Quintana.

Os quereres e os teres, aflições

Sim, afligia muito querer e não ter. Ou não querer e ter. Ou não querer e não ter. Ou querer e ter. Ou qualquer outra enfim dessas combinações entre os quereres e os teres de cada um, afligia tanto.
Caio Fernando Abreu.

Talvez

Não fizeram planos. Talvez um voltasse, talvez o outro fosse. Talvez um viajasse, talvez outro fugisse. Talvez trocassem cartas, telefonemas noturnos, dominicais, cristais e contas por sedex, que ambos eram meio bruxos, meio ciganos, assim meio babalaôs. Talvez ficassem curados, ao mesmo tempo ou não. Talvez algum partisse, outro ficasse. Talvez um perdesse peso, o outro ficasse cego. Talvez não se vissem nunca mais, com olhos daqui pelo menos, talvez enlouquecessem de amor e mudassem um para a cidade do outro, ou viajassem juntos para Paris, por exemplo, Praga, Pittsburg ou Creta. Talvez um se matasse, o outro negativasse. Seqüestrados por um OVNI, mortos por bala perdida, quem sabe. Talvez tudo, talvez nada. Porque era cedo demais e nunca tarde. Era recém no início da não-morte dos dois.
Caio Fernando Abreu.

sábado, 16 de outubro de 2010

Destituído de graça



O que obviamente não presta sempre me interessou muito. Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno vôo e cai sem graça no chão. 
Clarice Lispector.

Queimar também destrói

E recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa só existência. É por isso que me esquivo e deslizo por entre as chamas do pequeno fogo, porque elas queimam - e queimar também destrói.
Caio Fernando Abreu.

Como poeira dourada

Não, não ofereço perigo algum: sou quieta como folha de outono esquecida entre as páginas de um livro, sou definida e clara como o jarro com a bacia de ágata no canto do quarto - se tomada com cuidado, verto água límpida sobre as mãos para que se possa refrescar o rosto mas, se tocada por dedos bruscos num segundo me estilhaço em cacos, me esfarelo em poeira dourada.
Caio Fernando Abreu.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Poema do beco



Que me importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? 
- O que vejo é o beco.
 Poema do Beco, de Manuel Bandeira.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Entorpecimento

Ao abrir os olhos ela sabia exatamente onde se encontrava. A lua estava baixa no céu. Enrolou o casaco em volta das pernas, tremendo ligeiramente, sem pensar em nada. Havia uma parte de sua mente que estava dolorida, que precisava descansar. Como era bom estar apenas deitada ali, existir sem fazer perguntas. Sabia com certeza que, se quisesse, poderia lembrar tudo que acontecera. Precisava apenas de um pequeno esforço. Porém sentia-se bem do jeito que estava, com aquela cortina opaca no meio. Não seria ela quem a levantaria para contemplar de novo o abismo de ontem, para sofrer e suportar seu remorso. Naquele momento o que acontecera antes estava indistinto, irreconhecível. Afastou o pensamento daquilo de maneira resoluta, recusando-se a examiná-lo, esforçando-se ao máximo para erguer uma barreira segura entre eles. Semelhante ao inseto que vai fazendo seu casulo cada vez mais espesso e resistente, seu pensamento prosseguia fortalecendo aquela tênue divisão, o lugar perigoso de seu ser.
 Trecho do livro The Sheltering Sky, de Paul Bowles.

Quando foi que me desequilibrei?

Que coisas são essas que me dizes sem dizer, escondidas atrás do que realmente quer dizer?  Tenho me confundido na tentativa de te decifrar, todos os dias. Mas confuso, perdido, sozinho, minha única certeza é que de cada vez aumenta ainda mais minha necessidade de ti. Torna-se desesperada, urgente. Eu já não sei o que faço. Não sinto nenhuma outra alegria além de ti. Como pude cair assim nesse fundo poço? Quando foi que me desequilibrei? Não quero me afogar: Quero beber tua água. Não te negues, minha sede é clara.
 Trecho extraído do livro Caio Fernando Abreu - Caio 3D, O Essencial da Década de 1980, p.186.

Vou te procurar

Vou sair para ver o mar e me perder entre os labirintos que distanciam nossos passos. Vou te procurar entre as estrelas e os satélites distraídos, que confusos me ditaram caminhos errados e esparsos.
Caio Fernando de Abreu.

Está tudo bem

No fim destes dias encontrar você que me sorri, que me abre os braços, que me abençoa e passa a mão na minha cara marcada, na minha cabeça confusa, que me olha no olho e me permite mergulhar no fundo quente da curva do teu ombro. Mergulho no cheiro que não defino, você me embala dentro dos seus braços e você me beija e você me aperta e você me aquieta repetindo que está tudo bem, tudo, tudo bem.
 Caio Fernando Abreu.

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
A minha face?
Retrato, de Cecília Meireles.

Ame apenas

Não ame pela beleza, pois um dia ela acaba. Não ame por admiração, pois um dia você decepciona-se. Ame apenas, pois o tempo nunca pode acabar com um amor sem explicação.
Madre Teresa de Calcutá.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

As cerejas

Subi a escada. A escuridão era tão viscosa, que se eu estendesse a mão poderia senti-la amoitada como um bicho por entre os degraus. Tentei acender a vela mas o vento me envolveu. Escancarou-se a porta do quarto. E em meio do relâmpago que rasgou a treva, vi os dois corpos completamente azuis, tombando enlaçados no divã. Afastei-me cambaleando. Agora as cerejas se despencavam sonoras como enormes bagos de chuva caindo de uma goteira. Fechei os olhos. Mas a casa continuava a rodopiar desgrenhada e lívida com os dois corpos rolando na ventania.
Trecho do Conto "As Cerejas", de Lygia Fagundes Telles.

Sem meios-termos


Não me venha com meios-termos, com mais ou menos ou qualquer coisa. Venha à mim com corpo, alma, vísceras, tripas e falta de ar...
Caio Fernando Abreu.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Desconfiem dos heróis

Desconfiem dos chefes, dos heróis. Desconfiem de todas as pessoas de fora que tentam impor a vocês suas estruturas. Façam o que tenham de fazer. Sejam o que vocês são. Se não sabem o que são, descubram.
Timonthy Leary.