segunda-feira, 31 de maio de 2010

Desejos

As grandes sensações de dor ou de prazer pesam tanto sobre o homem, que o esmagam no primeiro momento e paralisam as forças vitais. É depois que passa esse entorpecimento das faculdades, que o espírito, insigne químico, decompõe a miríada de sensações, e vai sugando a gota de fel ou de essência que ainda estila dos favos apenas libados. Foi o que me sucedeu; e não sei se no dia seguinte trocaria a voluptuosidade lenta e infinita de minhas recordações ainda recentes por outra hora da febre ardente que na véspera me prostrara nos braços de Lúcia. Mas então não me lembrava que vendo-a, todos os meus desejos, que eu supunha extenuados, iam acordar de novo, tigres famintos da presa em que uma vez se tinham cevado.
Trecho do livro Lucíola, de José de Alencar.

Infinito enquanto dure

Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não, ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la nas suas, ela doce arde, arde, flameja.
Trecho do livro Onde estivestes de noite, de Clarice Lispector.

De olhos fechados

Ela, ela não pode ver o homem, separada da sombra interior da casa pela cegueira da luz de verão. Não se pode dizer se os seus olhos estão entreabertos ou fechados. Parece que ela está descansando. O sol está muito forte. Ela usa um vestido claro, de seda clara, rasgado na frente, que deixa vê-la. Sob a seda o corpo estava nu. O vestido teria sido talvez de um branco esvaecido, antigo. Assim ela teria feito às vezes. Às vezes também ela teria feito muito diferente. Diferente sempre. É o que vejo dela. Ela não teria dito nada, não teria olhado nada. Diante do homem sentado no corredor escuro, encerrou-se embaixo das pálpebras. Através delas vê transparecer a luz emaranhada do céu. Sabe que ele a olha, que ele vê tudo. Sabe isso de olhos fechados, assim como o sei eu, eu que olho. Trata-se de uma certeza.
Trecho do livro O homem sentado no corredor, Marguerite Duras.

Serenata

Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.

Permite que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silencio,
e a dor é de origem divina.

Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.
Serenata, de Cecília Meireles.

Espera



O telefone não vai tocar, e a porta não vai abrir,
o café está frio, amanheceu dia claro e você nunca esteve aqui.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

A palavra como silêncio

Há uma dimensão sagrada na palavra: ela supõe o silêncio. Escrever é buscar a voz alguma da escrita, o que jamais pode ser dito, e o dito torna-se sempre o intraduzível. Todo poema fracassa. Todo conto incidi uma derrota, a lástima da língua é o romance. Para que serve a Literatura? Para promover silêncios. Para fundamentar o não-dito. Não há outra função originária para o escritor: ele frustra a língua. Assim, nenhum escritor tem voz. Talvez o que possamos supor como berro, grito, rufo da voz seja, em verdade, tímido ruído de algum verbo. Todo escritor é abstrato. E não seria exagero supor que sua existência é a ficção de algum verbo, de alguma palavra, de alguma língua que, por sua vez, também é ficcional. Silenciar a língua, o corpo, as nódoas da carne e da alma. Silenciar o orvalho, o acrobatismo dos bêbados, as desilusões da infância. Silenciar a rua, a brisa, a bruma, as suposições, todas as fomes. Silenciar também as formas. Todas as estéticas. Silenciar o silêncio. Toda palavra é túmulo. Todo escritor é lápide.
"A Palavra como Silêncio", de Renato Pessoa.

Um peso

Pois bem, suavemente, um dia empurrando o outro, uma primavera após um inverno e um outono depois de um verão, tudo deslizou pouco a pouco, pedacinho por pedacinho; foi embora, partiu, desceu, quero dizer, pois sempre resta alguma coisa no fundo, assim como… um peso, aqui no peito!

Trecho do Livro Madame Bovary, de Gustave Flaubert.

Poços

Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? Agente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê.
Caio Fernando Abreu.

Em silêncio

Descobririas que as coisas e as pessoas só o são em totalidade quando não existem perguntas, ou quando essas perguntas não são feitas. Que a maneira mais absoluta de aceitar alguém ou alguma coisa seria justamente não falar, não perguntar - mas ver. Em silêncio. 
Caio Fernando Abreu.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Às vezes é preciso recolher-se

O amor nos tira o sono, nos tira do sério, tira o tapete debaixo dos nossos pés, faz com que nos defrontemos com medos e fraquezas aparentemente superadas, mas também com insuspeitada audácia e generosidade. E como habitualmente tem um fim - que é dor - complica a vida. Por outro lado, é um maravilhoso ladrão da nossa arrogância. Quem nos quiser amar agora terá de vir com calma, terá de vir com jeito. Somos um território mais difícil de invadir, porque levantamos muros, inseguros de nossas forças disfarçamos a fragilidade com altas torres e ares imponentes. A maturidade me permite olhar com menos ilusões, aceitar com menos sofrimento, entender com mais tranqüilidade, querer com mais doçura. Às vezes é preciso recolher-se.
Lya Luft.

domingo, 23 de maio de 2010

Inflexão

Do alto dos meus saltos altos, espreito-te pelo canto do olho. Aprecio cada gesto. Admiro a linha de luz que faz o contorno do teu perfil e as cores que sublinham o teu tom de pele.
Descontextualizo-te. Desdramatizo-te. Desligo as intermitências.

Aprovo o arrepio que se aproxima. Arrebanho as inferências que fluem. Apago as reticências.
Imagino-te a seguir-me com o olhar.
Nada me impede. Nada me limita. Não encontro fronteiras.
Mesmo assim, apresso-me e aglomero os excertos da normalidade.
Baixo o olhar.
Suspiro brevemente.
Continuo o meu caminho.
Inflexão, de Tina.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Fragilidade

Frágil – você tem tanta vontade de chorar, tanta vontade de ir embora. Para que o protejam, para que sintam falta. Tanta vontade de viajar para bem longe, romper todos os laços, sem deixar endereço. Um dia mandará um cartão-postal de algum lugar improvável. Bali, Madagascar, Sumatra. Escreverá: penso em você. Deve ser bonito, mesmo melancólico, alguém que se foi pensar em você num lugar improvável como esse. Você se comove com o que não acontece, você sente frio e medo. Parado atrás da vidraça, olhando a chuva que, aos poucos começa a passar.
Caio Fernando Abreu.

Segunda-feira



Por que, na segunda-feira, eles (nós) não revelam a carência do fim de semana e se dizem coisas duras?
Caio Fernando Abreu.

A última crônica

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.
A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
A última crônica, de Fernando Sabino. Crônica extraída do livro "A Companheira de Viagem".

Mãe


É um doar de amor sem fim feito uma fonte que nunca seca. É um dar-se de si a outro ser como se estivesse recriando eternamente o mundo. Mãe é mãe e pronto. Haverá outra definição mais lírica, mais precisa, mais definitiva? Ser mãe é uma homenagem perpétua à natureza.
Airton Monte.


P.S.: Mãe, eu te amo!

sábado, 1 de maio de 2010

Maria

Marchas carnavalescas animam as estreitas ruas do Morro do Ouro. Uma festa de cores alumia a escuridão do céu.
Em um pequeno barraco, num pedaço de espelho, uma mulher se olha e sorri. Sorriso faceiro, dentes magníficos. Mulata bonita, esbelta, olhos negros como azeviche. Esta é Maria, de vestido curto, saltos altos, e uma flor branca entre os cabelos crespos. Dona de um andar voluptuoso, Maria desce o morro e vai de encontro à multidão, sentindo o calor e a música se misturar aos confetes e serpentinas com que brincavam os foliões. A festa tá bonita. É carnaval e todos lhe sorriem. É carnaval e todos são irmãos, não há diferença entre raça ou classe social. A mulata se mistura a multidão e se entrega ao samba-enredo que canta a paz, o amor e a justiça. Maria ginga, fecha os olhos e imagina a avenida, o mestre-sala a lhe conduzir pala mão... Imagina os olhares, aplausos, capa de revista, se vê porta-bandeira, rainha de bateria. Entre sonhos, a mulata canta, dança, ri... A multidão aperta, mas ela não liga! É noite de sonho, de fantasia. Alguém a empurra, grita. Contra sua vontade, Maria desperta. Confusa, vê a multidão em tormento. Pessoas correm, gritam, choram. Um som seco ecoa. O gingado morre. A música cessa. Tudo se apaga. A flor dos cabelos da mulata se tinge de escarlate.
Maria, pobre Maria. Uma bala perdida encontrou a mulata e lhe tirou a vida. As cinzas lhe vieram mais cedo. É carnaval. Morreu o sonho, morreu a fantasia.
"Maria", de Francesca de L. Martins.

Ouvindo:
Maria, Carnaval E Cinzas - (Luiz Carlos Paraná)
Voz: Roberto Carlos

Não era noite, não era dia
Somente restos de fantasia
Somente cinzas, pobre Maria
Jamais a vida lhe sorriria

E nunca viria de porta-estandarte
Sambando com arte puxando cordões
E não estaria em plena folia
Nos olhos e sonhos de seus foliões

Até pensei




"A felicidade morava tão vizinha
Que, de tolo, até pensei que fosse minha..."
Música: Até Pensei  |  Compositor: Chico Buarque

Nenhuma amargura

Respirou fundo. Morangos, mangas maduras, monóxido de carbono, pólen, jasmins nas varandas dos subúrbios. O vento jogou seus cabelos ruivos sobre a cara. Sacudiu a cabeça para afastá-los e saiu andando lenta em busca de uma rua sem carros, de uma rua com árvores, uma rua em silêncio onde pudesse caminhar devagar e sozinha até em casa. Sem pensar em nada, sem nenhuma amargura, nenhuma vaga saudade, rejeição, rancor ou melancolia. Nada por dentro e por fora além daquele quase-novembro, daquele sábado, daquele vento, daquele céu azul – daquela não-dor, afinal.
Caio Fernando Abreu.